No passado dia 5 de Fevereiro, a TROCA enviou um e-mail a grupos parlamentares da Assembleia da República pedindo uma tomada de posição em plenário relativamente ao risco de splitting do Acordo de Associação UE-Mercosul – o qual permitiria a aprovação deste acordo de forma ilegal e antidemocrática, sem a aprovação por parte dos parlamentos nacionais.
O que significa a divisão (splitting) do Acordo de Associação UE-Mercosul?
O texto final do acordo foi negociado com “sucesso”, após décadas de negociação, entre a presidente da Comissão Europeia e os presidentes dos países do Mercosul, a 6 de Dezembro de 2024. Neste momento, o texto acordado encontra-se em processo de revisão legal por parte da Comissão Europeia, sendo expectável que em poucos meses a Comissão apresente ao Conselho Europeu uma proposta da sua arquitectura legal – e, consequentemente, do seu processo de ratificação.
Sendo o UE-Mercosul um Acordo de Associação que mistura competências exclusivas da UE e competências partilhadas com os Estados-Membros, este é considerado um acordo “misto”. Nos termos do artigo 218.º do Tratado sobre o Funcionamento da UE, a ratificação completa de acordos “mistos” exige:
1. a decisão por unanimidade no Conselho Europeu, de submeter o texto do acordo ao Parlamento Europeu;
2. a votação a favor por maioria no Parlamento Europeu;
3. e finalmente, a aprovação dos Parlamentos Nacionais relevantes.
A divisão do Acordo em dois (splitting), um de competências exclusivas da UE (pilar comercial) e outro de competências partilhadas com os Estados-Membros (pilares político e de cooperação), leva a dois processos de ratificação distintos:
a. acordo “misto” – pilares político e de cooperação: igual ao acima referido.
b. acordo de competência exclusiva da UE – pilar comercial:
1. decisão por maioria qualificada no Conselho Europeu, de submeter o texto do acordo ao Parlamento Europeu; e
2. votação a favor por maioria no Parlamento Europeu.
Torna-se óbvio que o splitting do Acordo UE-Mercosul tem como objectivo isolar o pilar comercial – ou seja, o acordo de comércio livre – num texto próprio, sujeito a um processo de ratificação muito mais simplificado, rápido e que evitaria a sua passagem nos parlamentos nacionais, onde poderia arriscar ser chumbado, causando anos de atraso ou mesmo o seu veto.
Se a Comissão ainda não apresentou a proposta final, porquê a preocupação com um possível splitting?
Embora a base legal do Acordo UE-Mercosul ainda não tenha sido finalizada, existe um precedente por parte da Comissão Europeia em optar por arquitecturas legais que contemplem a divisão de acordos “mistos”, quando se verifica a oposição por parte de alguns Estados-Membros, de forma a poder evitar o seu possível bloqueio quer no Conselho Europeu, quer nos parlamentos nacionais – como é o caso dos recentemente celebrados acordos com o Chile e a Singapura.
Este “contornar” da oposição existente ao acordo, forçando a sua ratificação e entrada em vigor contra a vontade soberana de alguns Estados-Membros, é uma estratégia ilegal e profundamente antidemocrática por parte da Comissão Europeia, impondo os seus interesses políticos e económicos a milhões de cidadãos europeus. Interesses esses negociados e estipulados de forma obscura, em reuniões “à porta-fechada”, com grupos de lobby liderados por grandes grupos industriais e financeiros.
Quais as consequências para Portugal de um possível splitting?
O splitting do Acordo UE-Mercosul permitirá que a sua parte comercial entre em vigor sem o consentimento democrático dos Estados-Membros, os quais se verão obrigados a cumprir os termos deste acordo de comércio livre, sob pena de sofrerem pesadas repercussões legais e financeiras. Para além disso, o Mecanismo de Reequilíbrio (Rebalancing Mechanism), estipulado no acordo comercial, compromete a capacidade dos Estados-Membros, incluindo Portugal, de legislar e implementar nova regulamentação nacional sem haver o risco de entrar em falta com os seus compromissos comerciais – resultando efectivamente no bloqueio de nova legislação que vá contra os interesses económicos visados no UE-Mercosul. Portugal ver-se-ia, assim, privado de autonomia em matérias fundamentais para a sua soberania.
Pelas razões mencionadas, defendemos que esta questão deve ser levantada e debatida em plenário na Assembleia da República, motivo pelo qual escrevemos a grupos parlamentares da AR.
Pedimos a estes um esforço político consertado no questionamento ao primeiro-ministro português, Luís Montenegro, quanto à sua posição relativamente a um possível splitting.
É fundamental esclarecer e tornar pública a intenção do primeiro-ministro português de defender o processo democrático europeu e a soberania dos Estados-Membros. O primeiro-ministro, em representação do povo português, deve posicionar-se no Conselho Europeu contra um acordo UE-Mercosul, especialmente quando apresentado pela Comissão Europeia de forma ilegal e antidemocrática.
O e-mail enviado a grupos parlamentares pode ser lido abaixo.
Bom dia,
Caro/a deputado/a (nome),
Escrevemos-lhe em nome da TROCA – Plataforma por um Comércio Internacional Justo e da coligação de organizações não-governamentais europeias mobilizadas em torno do Acordo de Associação UE-Mercosul.
Como provavelmente será do seu conhecimento, a 6 de Dezembro de 2024, a presidente da Comissão Europeia e os presidentes dos países do Mercosul concluíram as negociações do Acordo de Associação UE-Mercosul, um acordo com consequências negativas a nível social, ambiental, climático e de saúde pública. O texto final encontra-se agora em processo de revisão jurídica, estando previsto que em poucos meses a Comissão Europeia apresente uma proposta da sua base legal ao Conselho Europeu.
Sendo um acordo de associação, este mistura competências exclusivas da UE e competências partilhadas com os Estados-Membros. Nos termos do artigo 218.º do Tratado sobre o Funcionamento da UE, o Conselho decide por unanimidade sobre estes acordos “mistos”, e a sua ratificação exige uma maioria no Parlamento Europeu e a aprovação dos parlamentos nacionais de todos os Estados-Membros. Embora a arquitectura legal e, consequentemente, o processo de ratificação estejam ainda em deliberação, existe o precedente por parte da Comissão de contornar o poder de veto dos Estados-Membros ao não remeter para aprovação nos parlamentos nacionais.
Tendo em conta os últimos acordos celebrados (Chile e Singapura), é expectável que o Acordo de Associação UE-Mercosul seja dividido em dois acordos (splitting): um de competência exclusiva da UE (pilar comercial) e outro misto (pilares político e de cooperação)[1]. A Comissão pretende assim isolar a componente comercial, contemplando-a num novo acordo provisório que exigiria apenas uma decisão por maioria qualificada no Conselho e uma maioria no Parlamento Europeu, evitando assim a passagem pelos parlamentos nacionais. Mesmo que a ratificação do acordo político e de cooperação venha a falhar num ou mais Estados-Membros, o acordo comercial provisório manter-se-ia em vigor.
Segundo análises legais recentes[2], a divisão do acordo é incompatível com o direito da UE e manifesta um desvio fundamental do mandato de negociação original, uma vez que infringe os direitos dos membros individuais do Conselho, os quais consentiram nas negociações na expectativa do voto por unanimidade e ratificação nacional. Nesta base, o acordo poderia, inclusive, ser contestado no Tribunal de Justiça da UE por um Estado-Membro ou pelo próprio Parlamento Europeu.
Face à pressão existente para uma ratificação do acordo, consideramos existir um elevado risco político caso este entre em vigor sem o consentimento democrático por parte dos Estados-Membros. O splitting priva os Estados-Membros de exercerem plenamente o seu direito democrático e a sua soberania em matérias fundamentais (p.ex., comprometendo a capacidade de implementação de nova regulamentação), pondo em causa a legitimidade democrática da política comercial da UE.
Pelas razões mencionadas, defendemos que esta questão deve ser levantada e debatida em plenário na Assembleia da República, motivo pelo qual lhe escrevemos.
Pedimos ainda um esforço político consertado no questionamento ao primeiro-ministro português, Luís Montenegro, quanto à sua posição relativamente a um possível splitting.
É fundamental esclarecer e tornar pública a intenção do primeiro-ministro português em defender o processo democrático europeu e a soberania dos Estados-Membros. Consideramos ser imperativo que o primeiro-ministro, em representação do povo português, se posicione no Conselho Europeu contra um acordo que seja apresentado pela Comissão Europeia de forma ilegal e antidemorcrática.
Agradecemos desde já a sua atenção e tomada de posição, firme, em defesa de um comércio internacional democrático, enquanto representante eleito democraticamente pelo povo.
Saudações cidadãs,
Pela TROCA – Plataforma por um Comércio Internacional Justo
Graça Horta e Maria Guedes
[1] https://epthinktank.eu/2024/12/20/ratification-scenarios-for-the-eu%E2%80%91mercosur-agreement/