No passado dia 19 de Janeiro, a Comissão de Comércio Internacional do Parlamento Europeu votou a favor do Acordo de Parceria Económica (APE) entre a UE e o Quénia. A UE poderá assinar este acordo com o Quénia assim que o Conselho da União Europeia lhe der o seu aval.
O principal objectivo do APE entre a UE e o Quénia é a liberalização do comércio. Segundo os dados do Banco Mundial, a UE é o segundo maior parceiro comercial do Quénia e o seu mais importante mercado de exportação.
Organizações da sociedade civil enviaram aos eurodeputados uma declaração na qual referem o facto de o acordo prejudicar o desenvolvimento sustentável da Comunidade da África Oriental (CAO), dificultar a sua integração regional e comprometer a segurança alimentar.
Segue a declaração que a TROCA subscreveu, traduzida na íntegra:
Caro Membro do Parlamento Europeu,
As organizações abaixo assinadas, activas na solidariedade internacional, escrevem-lhe para expressar a nossa profunda preocupação com a proposta de ratificação do Acordo de Parceria Económica (APE) entre a UE e o Quénia.
Estamos convencidos de que o acordo, apresentado pela Comissão Europeia como “contribuindo para um crescimento económico sustentável e equitativo”, irá prejudicar a integração regional da Comunidade da África Oriental (CAO) e limitar o seu direito a desenvolver a sua economia de forma sustentável e equitativa.
Em primeiro lugar, o APE com a CAO, no qual se baseia o acordo entre a UE e o Quénia, não foi ratificado em 2016, tendo os Estados-membros reconhecido que as indústrias locais não seriam capazes de resistir às pressões concorrenciais das empresas da UE, prendendo ainda mais a região ao seu papel de fornecedor de produtos de base de baixo valor acrescentado. Calculou-se que o bem-estar na CAO diminuiria, enquanto a UE registaria um ganho de 212 milhões de dólares[1].
O interesse do Quénia no acesso preferencial ao mercado da UE pode ser atribuído ao seu sector orientado para a exportação, dominado pela Europa, como, por exemplo, o sector das flores. O preço deste acesso preferencial ao mercado é a liberalização de sectores como a pesca, de onde uma grande parte da população da EAC obtém as suas proteínas, e sobretudo a indústria, que tem o maior potencial de criação de emprego num país com uma população muito jovem. Além disso, a cláusula de “rendez-vous” em áreas como os serviços poderia colocar o Quénia numa situação de desvantagem competitiva a longo prazo e anularia os progressos alcançados na OMC no sentido de proteger os países menos desenvolvidos de uma concorrência dura em sectores tão sensíveis.
Em segundo lugar, tendo em conta que o Quénia faz parte da união aduaneira da CAO – que assegura o livre fluxo de mercadorias entre os países -, a aplicação do acordo conduziria a um fluxo de mercadorias europeias para todos os países da CAO através do Quénia, dada a dificuldade de aplicar as regras de origem e as salvaguardas que os parceiros introduziram no texto. De facto, os produtos provenientes do comércio ilegal ou informal, bem como os produtos transformados, são difíceis de rastrear até à sua origem. O facto de os produtos acima referidos estarem sujeitos à pauta externa comum da CAO não é convincente. De facto, as importações da CAO poderão diminuir em 42 milhões de dólares[2] se estas medidas fronteiriças não cumprirem a sua promessa.
Há razões para crer que o farão. Por exemplo, a Costa do Marfim e o Gana implementaram um APE provisório com a UE que facilitou o fluxo de leite em pó nestes países. Subsequentemente, a capacidade de países como o Burkina Faso, a Nigéria e o Senegal – que não assinaram um APE mas estão numa união aduaneira com a Costa do Marfim e o Gana – para cobrir as suas necessidades de consumo de leite através da produção interna diminuiu de 80% para 69%, 41% para 21% e 33% para 21%, respetivamente, nas últimas duas décadas[3]. A pressão concorrencial exercida pelo leite em pó mais barato, que atravessa as fronteiras através de produtos transformados, compromete a capacidade destes países para garantir a segurança alimentar.
Em terceiro lugar, mesmo que o Quénia e os seus países parceiros consigam aplicar eficazmente as salvaguardas fronteiriças e as regras de origem, o que a CE espera que aconteça, este acordo compromete efectivamente os esforços dos Estados da CAO no sentido da integração regional. Uma vez que a integração económica regional exige uma união aduaneira – como fez a UE -, um acordo comercial com um dos países membros – neste caso o Quénia – exige que o bloco da CAO desista das suas ambições neste domínio[4]. Por esta razão, a UE nunca permitiria que os seus Estados-Membros assinassem acordos comerciais bilaterais. Não é de excluir um encerramento mútuo das fronteiras entre o Quénia e os outros países da CAO.
Além disso, a iniciativa do Quénia poderá violar o Protocolo da União Aduaneira e o Protocolo do Mercado Comum da CAO[5]. Para além disso, a sua interpretação do princípio da “geometria variável” pode ser incorrecta a dois níveis. Primeiramente porque o princípio destina-se a ser invocado apenas entre os membros da CAO e não com terceiros como a UE[6]. Por outro lado, porque os chefes de Estado da CAO decidiram, em Fevereiro de 2021, que o Quénia podia invocar esse princípio para aplicar o APE em vigor, mas não necessariamente para encetar novas negociações[7]. As negociações entre o Quénia e a UE já agravaram as tensões na África Oriental. A aplicação do APE irá piorar esta situação.
A estratégia da UE de isolar países africanos individualmente, na esperança de que outros países da região adiram ao acordo com o país sob pressão, não produziu até à data qualquer resultado positivo. Pelo contrário. Enquanto a UE não reconhecer os desenvolvimentos regionais, as desigualdades históricas e a responsabilidade partilhada mas diferenciada dos países pelas alterações climáticas nos seus acordos comerciais, nunca será verdadeiramente vista como um “parceiro”.
Por conseguinte, apelamos aos deputados do Parlamento Europeu para que votem contra o APE UE-Quénia e enviem um sinal forte à Comissão Europeia de que os seus eleitores querem acordos comerciais verdadeiramente justos, equitativos e sustentáveis.
Com os melhores cumprimentos,
11.11.11-Coalition for International Solidarity, Belgium
ActionAid International Kenya, Kenya
Africa Mythlab Institute, Kenya
Aitec (Association internationale de techniciens, experts et chercheurs), France
Attac Austria, Austria
Attac France, France
BLOOM, France
Bündnis für gerechten Welthandel, Germany
Civil society coalition on Transport Uganda, Uganda
Colibri – Beiträge für eine menschenwürdigere Welt e.V., Germany
Collectif Stop CETA/Mercosur, France
Confédération Générale du Travail France (CGT), France
Dachverband Entwicklungspolitik Baden-Württemberg, Germany
Dukingire Isi Yacu, Burundi
Ecologistas en Acción, Spain
Extinction Rebellion France, France
Fair Trade Advocacy Office (FTAO), Belgium
Global Aktion, Denmark
Kirchliche Arbeitsstelle Südliches Afrika/Werkstatt Ökonomi, Germany
Les Amis du Monde diplomatique, France
Oxfam, Nairobi, Kenya – Brussels, Belgium
PowerShift e.V., Germany
Southern and Eastern Africa Trade Information and Negotiations Institute (SEATINI), Uganda
TROCA – Plataforma por um Comércio Internacional Justo, Portugal
Uganda land owners Association, Uganda
Védegylet Egyesület / Protect the Future Association, Hungary
ZEA, France
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3 Oxfam (2024). Quelles politiques commerciales et fiscales au service du développement durable des chaines de valeur lait local en Afrique de l’Ouest.
4 https://www.afronomicslaw.org/2019/05/30/the-eu-eac-economic-partnership-agreement-standoff-the-variabl e-geometry-question
5 “Under Article 12 of the East African Customs Union Protocol (CU Protocol), EAC members are obliged to maintain a Common External Tariff (CET). If some EAC members implement the EPA, and others do not, EAC members will no longer maintain the same external tariffs and thus violate the CET.” https://www.researchgate.net/publication/322799130_The_EACEU_EPA_and_Brexit_Legal_and_Economic_Implications_for_EAC_LDCs
6 Article 7.1(e) of the EAC Treaty states: “the Principle of variable geometry which allows for progression in co-operation among groups within the Community [See also art. 1 and 2] for wider integration schemes in various fields and at different speeds”.
7 https://www.eac.int/communique/1942-communiqué-of-the-21st-ordinary-summit-of-the-east-african-commun ity-heads-of-state
https://riviste.unimi.it/index.php/milanlawreview/article/download/17394/15311