No dia 30 de Maio os Jornalistas Livres entrevistaram a Eurodeputada socialista Isabel Santos. O entrevistador, Bruno Falci, perguntou à deputada qual a sua posição sobre o acordo UE-MERCOSUL e a deputada manifestou-se favorável ao acordo, alegando que essa seria a opção que melhor protegeria o meio ambiente. No entanto, uma das razões mais importantes para rejeitar este acordo é a ameaça que representa para o clima planetário e para o património ambiental sul-americano (incluindo a floresta Amazónica e outras florestas tropicais).
Por essa razão, optámos por escrever a seguinte carta aberta à Eurodeputada Isabel Santos:
Exma. Sra. Deputada do Parlamento Europeu Isabel Santos,
Assistimos com atenção à entrevista por si dada ao colectivo Jornalistas Livres, que teve lugar no dia 29 de Maio de 2020. Ficámos a conhecer, com satisfação, o seu percurso de preocupação com o Ambiente e os Direitos Humanos em todo o mundo e no Brasil em particular. Neste contexto, parece-nos particularmente intrigante o seu posicionamento relativamente a uma eventual ratificação do acordo UE-MERCOSUL.
A Deputada afirmou que o acordo poderia proteger o meio ambiente e justificou essa expectativa alegando que o mesmo tem “todo um capítulo” dedicado à questão ambiental, que supostamente limitaria a capacidade de destruição do património natural sul-americano.
Esta posição parece-nos muito preocupante, na medida em que nenhuma organização ambientalista relevante na Europa ou no Brasil partilha esta perspectiva. Pelo contrário, por exemplo em Portugal o GEOTA, a Quercus e a ZERO, entre muitas outras, já se pronunciaram contra este acordo. Na Europa, tanto as organizações Friends of the Earth, como a Greenpeace, ou o European Environmental Bureau, entre outras, têm denunciado este acordo como uma das maiores ameaças para a Natureza e o Planeta. No Brasil, tanto o Instituto Socioambiental como o Observatório Climático se estão a mobilizar para o combate a este acordo, entre muitas outras associações e colectivos neste país e noutros países sul-americanos.
Efectivamente, em resultado do acordo, só o sector agrícola deverá provocar um aumento global e directo das emissões de gases de efeito de estufa de cerca de 9 milhões de toneladas (CO2 equivalente) anuais, valor esse que é superior às emissões de uma cidade como Lisboa e quase equivalente às emissões de Belo Horizonte. Estes valores, note-se, não incluem os impactos indirectos ou os impactos de outros sectores abrangidos pelo acordo. Se tivermos em conta que uma das maiores vantagens para a União Europeia em aprovar o acordo é aumentar a exportação de automóveis para a América do Sul (ameaçando a indústria automóvel sul-americana no processo), é fácil compreender como a aprovação deste acordo impede o cumprimento dos objectivos assumidos no Acordo de Paris.
Infelizmente, as ameaças ambientais que este acordo vem agravar não se limitam ao aumento das emissões de gases de efeito de estufa. Ao acentuar as assimetrias económicas entre os dois blocos, este acordo vem reforçar um modelo extractivista que relega as principais economias da América do Sul à ênfase no sector primário (impedindo e ilegalizando qualquer estratégia desenvolvimentista em relação ao sector industrial destes países), ênfase essa que vai inevitavelmente aumentar os incentivos para a destruição do património ambiental sul-americano. Assim, o acordo reforça e perpetua a dependência do Brasil e dos outros países sul-americanos das actividades que causam maior destruição ambiental.
É por isso que o acordo deverá resultar numa perda da biodiversidade galopante em todos os biomas da América do Sul, um aumento do ritmo de destruição da Floresta Amazónica e do Cerrado; na expansão das monoculturas intensivas e da pecuária intensiva à custa da destruição de ecossistemas naturais; bem como a utilização não controlada de pesticidas, entre muitos outros problemas ambientais, aos quais se juntam as violações dos Direitos Humanos associadas ao desrespeito pelos territórios indígenas ou até mesmo acções de homicídio e/ou extermínio.
É verdade que, como a eurodeputada afirmou, a intensidade e o ritmo da destruição ambiental e das violações dos Direitos Humanos tem aumentado em antecipação deste acordo. Mas isso não ocorre, como a deputada alegou, por receio de eventuais mecanismos de controlo num dos capítulos do acordo que – de tão inconsequentes e vazios – não persuadiram nenhuma organização ambientalista a apoiar o acordo UE-MERCOSUL.
A intensidade e ritmo da destruição ambiental e das violações dos Direitos Humanos tem efectivamente aumentado em antecipação deste acordo, mas porque se antecipam novos mercados para os frutos dessa devastação ambiental em resultado do tratado internacional. Este ritmo avassalador de destruição da Natureza passará a ser a norma ou até a intensificar-se, caso o acordo venha a ser aprovado.
De facto, “todo o capítulo” mencionado relativo às questões ambientais é tão vazio e inconsequente que não prevê qualquer tipo de penalidade caso os estados não respeitem quaisquer das provisões que constem deste capítulo. “É proibido, mas pode-se fazer”.
Devemos acrescentar que, segundo o acordo, o cumprimento das normas e padrões relativos às questões sanitárias é verificado pelas entidades do país exportador, que preparará uma lista dos “estabelecimentos aprovados” com autorização para controlar as plantas e animais para exportação. O país importador poderá levar a cabo acções de verificação ou auditoria ao sistema de controlo oficial do país exportador, mas essas acções terão de ser anunciadas com 60 dias de antecedência.
Ora os actuais controlos já são claramente insuficientes. A Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos, no seu mais recente relatório, declarou que 7,6% das amostras recolhidas excedem o nível máximo de pesticidas permitido na União Europeia. Se nos lembrarmos que o acordo rejeita o “Princípio da Precaução”, favorecendo ao invés a abordagem mais laxista da Organização Mundial do Comércio, facilmente poderemos compreender a fragilidade e inconsequência dos escassos mecanismos de controlo propostos, o que explica porque é que as consequências ambientais da ratificação do acordo UE-MERCOSUL serão fortemente perversas para a América do Sul, para a Europa e para todo o Planeta.
Existem, no entanto, outras razões para rejeitar a ratificação deste acordo:
- O acordo foi negociado ao longo de 20 anos em segredo, e sem controlo democrático, sendo que já foi assinado sem que partes muito relevantes estejam (até agora!) disponíveis para o público, e sendo que só em Julho de 2019 existiu algum tipo de divulgação do seu conteúdo. A sociedade civil sul-americana e europeia não teve qualquer voz ou impacto nestas negociações.
- O acordo vem contribuir para um agravamento de desigualdades e assimetrias. Irá contribuir para piores condições laborais dos dois lados do Atlântico, bem como para um aumento do desemprego no curto-médio prazo no sector agrícola da UE e no sector industrial da América do Sul. Se é verdade (embora não seja garantido) que o emprego pode recuperar a longo prazo, também é verdade que o novo equilíbrio corresponderá a uma Europa mais vulnerável do ponto de vista alimentar e uma América do Sul menos desenvolvida do ponto de vista industrial.
- A homogenização de padrões entre os dois blocos corresponderá a acentuados riscos para o consumidor e para a saúde pública, uma vez que a harmonização regulatória proposta não se pauta pelos padrões mais rigorosos, mas sim pelos mais laxistas.
- O acordo favorece as empresas multinacionais face ao interesse público nos domínios relativos às questões fiscais (em particular no que concerne ao comércio electrónico) e relativos à propriedade intelectual. Além disso, o acordo impede o uso de políticas públicas para regular o investimento, os serviços e os fluxos de capital, o que, entre outras coisas, pode trazer consequências macroeconómicas perversas e até agravar a fragilidade do sistema financeiro, com prejuízos que acabam por ser sentidos por toda a população, principalmente a mais vulnerável do ponto de vista económico e social.
- O acordo conduzirá a uma degradação muito significativa do bem-estar animal, principalmente no sector pecuário. Uma maior proporção da carne consumida será produzida de forma intensiva e a legislação relativa ao bem-estar animal será uma desvantagem competitiva que arrastará a produção para onde a despreocupação a este respeito for maior. Além dos prejuízos directos para os animais, os consumidores de ambos os lados do Atlântico também serão prejudicados, na medida em que este processo costuma vir acompanhado de dietas menos saudáveis para os animais, na expectativa de reduzir os custos e aumentar os lucros.
- O acordo contorna os processos democráticos ao estabelecer comités responsáveis por ir “actualizando” a harmonização regulatória (ou seja, ir alterando gradualmente o acordo), para os quais não existem mecanismos adequados de escrutínio e prestação de contas. São mecanismos que acabam por “esvaziar” a Democracia.
- O acordo faz alusão a outros tratados bilaterais de investimento para fazer cumprir algumas das suas disposições. Como um tratado deste tipo entre a União Europeia e o Brasil não existe, o acordo parece preparar-se para tornar necessário o estabelecimento de um “Investment Court System” entre a UE e o Brasil. Um sistema deste tipo é assustadoramente semelhante ao sistema ISDS (“Investor-state dispute settlement”), uma solução de justiça privada que o Brasil teve até agora a sabedoria de evitar, poupando-se a muitos dos ataques anti-democráticos que outros países da América do Sul (e mais recentemente também na Europa) sofreram por via deste mecanismo. Os antecedentes relativos aos acordos com o Chile e o México tornam este cenário extremamente preocupante. Com estes sistemas de Justiça privada, ficam ameaçados os direitos laborais, os direitos dos consumidores, os serviços públicos, a saúde pública, a coesão social, a Democracia, o meio ambiente e até os Direitos Humanos.
Por todas estas razões, gostaríamos de fazer um apelo a que re-equacione o seu apoio a este acordo. Gostaríamos muito de ter oportunidade de conversar consigo sobre este tema, seja em privado ou em público, pois estamos convencidos de que uma segunda análise às suas implicações vai tornar as preocupações da Exma. Sra. Deputada com o Ambiente, os Direitos Humanos e o interesse público em fortes razões para rejeitar a ratificação do acordo UE-MERCOSUL.
Aguardando resposta, agradecemos a atenção dispensada.
Saudações cidadãs,
TROCA, Plataforma por um Comércio Internacional Justo