A maior causa de desflorestação a nível mundial é a produção agrícola em larga escala, em sistemas de monocultura. Por todo o mundo, paisagens naturais de floresta são convertidas em áreas de exploração agrícola, destruindo por completo os ecossistemas locais, eliminando a vida selvagem presente e os meios de subsistência de milhões de pessoas que dependem destes agroecossistemas. A expansão agrícola é responsável por cerca de 90% da desflorestação mundial: onde encontrávamos floresta tropical, encontramos hoje explorações de gado, extensas plantações de palmas ou de produção de soja.
Até agora, os esforços para reduzir a desflorestação associada à indústria agrícola têm, na sua grande maioria, sido de natureza voluntária e infrutíferos. O novo Regulamento da União Europeia para a Desflorestação e Degradação Florestal (EUDR) é um passo determinante para deixar para trás o actual, mas obsoleto, modelo voluntário. Segundo o estipulado pelo EUDR, no início de 2026, os produtos de base e seus derivados (bovinos, café, cacau, borracha, madeira, palmeira-dendém e soja) só poderão ser comercializados no mercado comum europeu caso sejam livres de desflorestação, “tendo simultaneamente em conta a protecção dos direitos humanos e os direitos dos povos indígenas e das comunidades locais”.
Um pilar fundamental deste regulamento, mormente para a sua adequada aplicação, é o seu sistema de avaliação comparativa (benchmarking), a ser desenhado pela Comissão Europeia até Junho do corrente ano. Este determinará as linhas orientadoras e critérios pelos quais se deve reger a categorização dos países produtores, ou de regiões específicas, como sendo, nomeadamente, de “baixo risco”, “padrão” ou de “alto risco”. A Comissão deverá garantir que a atribuição do nível de risco, de cada país ou zona, não só reflecte verdadeiramente a incidência de desflorestação ou degradação florestal associada à produção dos bens contemplados, mas ter também em conta “as violações dos direitos humanos associadas à desflorestação ou à degradação florestal”, incluindo os direitos dos povos indígenas e das comunidades locais.
Documentos publicados recentemente pela Comissão, os quais previam a classificação da maioria dos países como de baixo risco, levantaram preocupação relativamente à capacidade da metodologia da avaliação comparativa proposta para reflectir verdadeiramente as realidades no terreno. Declarações como esta apontam para um processo de avaliação comparativa politizado, em vez de baseado em critérios objectivos. Um exemplo, é o recentemente negociado Acordo UE-Mercosul, o qual se prevê que seja “favoravelmente considerado” na classificação de risco dos países. A Comissão aparenta, com a proposta apresentada até agora, desviar-se fundamentalmente do mandato a si atribuído pelos legisladores, ao desconsiderar factores de risco essenciais e sugerir um processo de avaliação submetido a interesses políticos.
Os acordos de comércio livre não podem comprometer a classificação de risco dos países baseada em provas.
A TROCA, juntou-se assim, a 39 outras organizações, incluindo a Earthsight, Human Rights Watch, ClientEarth, Greenpeace e Global Witness, na subscrição de uma carta aberta à Comissão Europeia para garantir que a avaliação comparativa do EUDR reflecte, de facto, os riscos para os direitos humanos e ambientais.
A tradução da carta pode ser lida na íntegra abaixo.
Teresa Ribera, Vice-Presidente Executiva para uma Transição Limpa, Justa e Competitiva
Kaja Kallas, Alta Representante para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança e Vice-Presidente da Comissão Europeia
Jessika Roswall, Comissária para o Ambiente, Resiliência Hídrica e uma Economia Circular Competitiva
Jozef Síkela, Comissário para as Parcerias Internacionais
Maroš Šefčovič, Comissário para o Comércio e a Segurança Económica, Relações Interinstitucionais e Transparência
28 de janeiro de 2025
Caros Comissários Ribera, Kallas, Roswall, Síkela e Šefčovič
Garantir que a avaliação comparativa do EUDR reflecte riscos para os direitos humanos e ambientais
Estamos a escrever para instar a Comissão Europeia a assegurar que a avaliação comparativa, ao abrigo do Regulamento da União Europeia sobre Produtos Livres de Desflorestação (EUDR), mantenha as ambições da lei e reflicta os riscos para os direitos humanos e de desflorestação existentes nas áreas de produção.
O EUDR é um acto legislativo histórico, que garantirá que o consumo dos cidadãos da UE não leva à destruição de florestas insubstituíveis, nem à violação de direitos dos povos indígenas e das comunidades tradicionais que dependem dos ecossistemas florestais.
O processo de avaliação comparativa, nos termos do artigo 29.º do EUDR, visa auxiliar na aplicação do regulamento, classificando os países, ou áreas dentro dos mesmos, como de “baixo, padrão ou elevado risco”. Os bens de consumo produzidos em áreas de alto risco serão sujeitos a verificações adicionais pelas Autoridades Competentes. Além de apoiar a aplicação da lei, o estatuto de referência de um país, ou área, determinará quanto esforço as empresas devem despender em due diligence (diligência devida).
A Comissão publicou matéria a 2 de outubro de 2024 que previa a classificação da maioria dos países como de baixo risco. A Comissão reiterou posteriormente este ponto em diversas ocasiões. Esta declaração, por si só, é preocupante, uma vez que a Comissão ainda não finalizou a metodologia, nem efectuou a avaliação comparativa de nenhum país. Estas declarações podem dar a impressão de que o processo de avaliação comparativa é politizado, em vez de se basear em critérios objectivos.
Uma avaliação comparativa que não reflicta os riscos ambientais e para os direitos humanos nas zonas de produção comprometeria o objetivo de pôr termo à cumplicidade europeia na desflorestação. Além disso, seria um desserviço aos comerciantes e operadores se a avaliação comparativa deturpasse as condições reais nas áreas de produção, levando-os a tomar medidas inadequadas de diligência e mitigação de riscos, potencialmente aumentando o risco de incumprimento dos seus produtos.
Consideramos que as questões que se seguem são as mais importantes para salvaguardar a integridade da metodologia de benchmarking e dos seus resultados.
O estatuto de alto risco não deve ser limitado aos países sujeitos a sanções da ONU
O documento “Princípios gerais da metodologia de benchmarking” (Anexo Princípios Gerais), divulgado a 2 de outubro de 2024, refere que a categorização dos países como de alto risco “dá especial atenção aos países sujeitos a sanções do Conselho de Segurança da ONU e do Conselho da UE”. Esta formulação é ambígua, mas parece implicar que apenas os países sujeitos a sanções serão classificados como de alto risco. Exortamos V. Exas. a garantir que o processo de avaliação comparativa classifique os países, ou zonas, com base numa avaliação exaustiva do risco de desflorestação e degradação florestal, bem como na aplicação da legislação relativa à desflorestação e à proteção dos direitos humanos, tal como previsto no artigo 29.º (3) e (4).
O EUDR é claro ao afirmar que a determinação do risco “deve basear-se principalmente” na taxa de desflorestação e degradação florestal, na taxa de expansão de terras agrícolas para as commodities relevantes e nas tendências de produção das commodities relevantes e dos produtos relevantes numa jurisdição, conforme o Artigo 29.º(3). Embora as sanções da ONU “possam”, e de facto devem, ser tidas em conta na avaliação, o regulamento é claro ao afirmar que estes critérios não se podem substituir mutuamente. Na nossa opinião, a proposta da Comissão de uma metodologia que coloca a existência de sanções acima dos critérios do Artigo 29.º(3) é incompatível com o regulamento.
Além disso, embora a existência de sanções seja um factor pertinente, está longe de ser o único que sugere fortemente um estatuto de alto risco. A título de exemplo, outros factores podem também incluir a prevalência de tráfico humano numa indústria, como foi o caso da cultura do cacau no Gana e na Costa do Marfim, ou níveis persistentemente elevados de desflorestação ilegal, como tem sido observado na Amazónia brasileira na última década.
A avaliação comparativa deve ter em conta, desde o início, os riscos de ilegalidade e para os direitos humanos
Para garantir que a avaliação comparativa inclui os riscos de incumprimento, esta deve avaliar se a produção dos bens comerciais abrangidos e seus derivados pode estar associada à violação de direitos humanos e das leis nacionais relevantes, conforme previsto no Artigo 29.º(4)(c) e (d). A Human Rights Watch, a título de exemplo, propôs uma lista de controlo para avaliar os riscos em matéria de direitos humanos, adaptada ao EUDR.
Contudo, o Anexo de Princípios Gerais indica que a Comissão só considerará matérias de ilegalidade e de violação de direitos numa “avaliação posterior”, sendo esta “possível” mas não obrigatória. Na nossa opinião, a não consideração dos critérios previstos no Artigo 29.º(4)(c) e (d) resultará, inevitavelmente, numa captação dos riscos de incumprimento inferior ao real.
Pesquisa levada a cabo por ONG e grupos da sociedade civil demonstrou que os interesses ligados ao agronegócio têm sido responsáveis pela expropriação de terras de pequenos agricultores e de povos indígenas, pela drenagem e queima de turfeiras, pela poluição do ar e dos cursos de água, pelo envenenamento de trabalhadores e das comunidades locais com pesticidas perigosos e pela intimidação e morte de defensores dos direitos humanos e de sindicalistas. Todos estes fatores devem, imperativamente, ser tidos em conta na avaliação da conformidade, ou não, de um produto com o EUDR, e têm de ser considerados no processo de benchmarking.
Existem instâncias onde a ocorrência de violações dos direitos humanos indígenas e das leis nacionais relacionadas com a produção agrícola ocorreram em zonas de baixo risco de desflorestação. Nomeadamente, áreas desmatadas antes de Dezembro de 2020 ou onde ocorreu destruição de ecossistemas que não correspondem à definição de “floresta”. Produtos provenientes de zonas onde o incumprimento de leis nacionais relevantes, isto é, ligadas à produção dos bens comerciais relevantes, acontece de forma continuada, encontram-se em risco de violar o EUDR.
Para garantir que o processo de avaliação comparativa fornece, aos operadores, comerciantes e Autoridades Competentes, um guia adequado dos riscos de violação do EUDR, recomendamos que a Comissão aplique, desde o início e de forma coerente, os critérios definidos no Artigo 29.º(4)(c) e (d) do EUDR.
A degradação florestal deve ser considerada, juntamente com a desflorestação, como um factor de risco
No caso da madeira e dos produtos de madeira, o termo “livre de desflorestação” significa que o produto não foi produzido em terrenos sujeitos a desflorestação ou explorado de forma a induzir degradação florestal (ênfase nossa). No entanto, o esboço da metodologia de avaliação comparativa no Anexo de Princípios Gerais apenas menciona taxas de desflorestação (isto é, a conversão de terras florestais para uso agrícola). Tal vai contra o referido no Artigo 29.º(3), o qual explicita “degradação florestal” como um dos critérios “principais” em que a avaliação comparativa do risco “se deverá basear”.
A formulação, pela Comissão, da metodologia da avaliação comparativa, não pode contornar os requisitos originais do regulamento, conforme estabelecido no Artigo 29.º(3)(a). Jurisdições com grandes indústrias de base florestal, que podem registar mais degradação florestal do que desflorestação para fins agrícolas, não devem ser erroneamente tratadas como de baixo risco.
As tendências de produção devem ser consideradas para todas as mercadorias abrangidas pelo EUDR
A metodologia de benchmarking estabelecida no Anexo Princípios Gerais propõe que sejam consideradas apenas as tendências de produção de madeira e de gado. Isto representaria uma restrição indevida do âmbito pretendido no Artigo 29.º(3)(c), o qual define que “as tendências de produção de bens e produtos relevantes” têm de ser consideradas. Por conseguinte, é necessário incluir as tendências de produção para todas as commodities relevantes e os seus produtos derivados.
Os acordos comerciais não devem comprometer a classificação de risco baseada em factos
O Acordo UE-Mercosul recentemente negociado, prevê que o acordo, e as ações tomadas para a sua implementação, “será considerado favoravelmente, entre outros critérios, na classificação de risco dos países” (ênfase nossa). Esta é uma referência clara ao processo de avaliação comparativa do EUDR. Uma obrigação, por parte da Comissão, de ter em conta o Acordo UE-Mercosul aquando do seu processo de benchmarking dos países do Mercosul, de forma favorável, vai para além do Artigo 29.º(4)(b), o qual prevê que a Comissão pode considerar (favoravelmente ou não) acordos “que estejam relacionados com desflorestação e degradação florestal e facilitar a conformidade dos produtos e mercadorias relevantes com o Artigo 3º e a sua implementação eficaz.” Isto parece inconsistente com a obrigação da Comissão, ao abrigo do EUDR, de que o exercício de avaliação comparativa “seja baseado numa avaliação objectiva e transparente”, como anteriormente salientado numa carta assinada por 30 organizações da sociedade civil.
Também não é claro se o Acordo do Mercosul se qualificaria como um acordo a ser considerado nos termos do artigo 29.º(4). A redação do Acordo leva também à perspectiva de que os focos de desflorestação da região do Mercosul, ou áreas conhecidas por violações dos direitos humanos, possam ser classificados de menor risco.
Em síntese, instamos a Comissão a assegurar que a metodologia de avaliação comparativa:
- Considera as violações de direitos humanos e os riscos de ilegalidade desde o início, para todos os países, em conformidade com o Artigo 29.º(4)(c) e (d), incluindo os países com baixas taxas de desflorestação ou de degradação florestal ;
- Não utiliza as sanções da ONU como critério principal ou único para determinar se um país, ou partes dele, são de alto risco;
- Considera a degradação florestal juntamente com a desflorestação, sendo consistente com o texto do regulamento;
- Considera as tendências de produção de todas as commodities abrangidas pelo EUDR;
- Não qualifica indevidamente os acordos comerciais como neutralizadores de riscos mensuráveis de desflorestação, ilegalidade ou violações de direitos.
Os especialistas das nossas organizações encontram-se à vossa disposição para discutir mais aprofundadamente estas recomendações.
Lista dos signatários:
Amigas de la Tierra (Friends of the Earth Spain)
Both ENDS
Bruno Manser Fonds
Canopee
ClientEarth
CNCD 11.11.11
Coffee Watch
Deutsche Umwelthilfe
Development Fund Norway
Earthsight
Ecologistas en Acción
Entraide & Fraternité
Environmental Investigation Agency
Envol Vert
Ethical Trade Norway
Eurogroup for Animals
European Trade Justice Coalition
Fair Trade Advocacy Office
Fern
Friends of the Earth Europe
Framtiden i våre hender
Global Witness
Greenpeace European Unit
Human Rights Watch
Legambiente
Mighty Earth
Norwegian Forum for Development and the Environment
OroVerde – The Tropical Forest Foundation (Germany)
Perkumpulan Kaoem Telapak
Polish Ecological Club in Krakow Gliwice Chapter
Rainforest Foundation Norway
SAVE Rivers (Malaysia)
The Borneo Project
The Wilderness Society
TROCA – Plataforma por um Comércio Internacional Justo
Veblen Institute
Verdens Skove (Forests of the World Denmark)
Working group Food Justice, the Netherlands
WWF European Policy Office
ZERO – associação sistema terrestre sustentável