No passado dia 13 de Janeiro, numa carta aberta da iniciativa conjunta da Friends of the Earth Europe, Climate Action Network Europe, Corporate Europe Observatory, European Environmental Bureau, European Public Service Union e European Trade Union Confederation, mais de 270 organizações da sociedade civil, entre elas a TROCA, ao lado de sindicatos, grupos de consumidores, organizações de agricultores, grupos de defesa dos direitos humanos e organizações ambientais que representam milhões de cidadãos, pediram à presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que evite a desregulamentação e priorize a protecção das pessoas, da natureza e da democracia nos seus processos de tomada de decisão. As organizações salientam a necessidade urgente de uma política e regulamentações eficazes para enfrentar os desafios socioecológicos da Europa.
A desregulamentação de protecções legais essenciais apenas aprofunda a desigualdade e a insegurança entre os europeus, mina a confiança dos cidadãos nas instituições públicas e alimenta narrativas antidemocráticas que exploram receios das pessoas para obter ganhos eleitorais.
No sentido de reforçar a necessidade de garantir um futuro justo e sustentável, as organizações apelam à comissão para:
- Manter, complementar, fortalecer e implementar regras que permitam uma transformação profunda, socialmente justa e ecológica das nossas sociedades.
- Fornecer garantias sólidas de que a “simplificação” não obstruirá ou atrasará as regulamentações necessárias para a transição socioecológica, tanto a nível da UE como nacional.
- Impedir qualquer retrocesso nos padrões sociais, ambientais e de direitos humanos.
- Assegurar que a aplicação das leis existentes e dos novos regulamentos da UE:
– responsabilizam as empresas pelos seus impactos sociais e ambientais
– promovem o diálogo social, a participação activa dos cidadãos e reforçam a governação democrática.
Nesta acção colectiva, estas OSC enviam uma mensagem clara: o caminho da Europa para o progresso reside na priorização do bem-estar dos seus cidadãos e dos ecossistemas, garantindo um futuro próspero e inclusivo para todos e não uma corrida para o fundo, na qual a simplificação acabe por destruir o modelo social europeu.
Este apelo surge antes do anúncio do Plano para a Competitividade da UE.
Reproduzimos abaixo a tradução em português da carta aberta.
Ursula von der Leyen: Proteger as pessoas, a natureza e a democracia na legislação da UE
Nós, as organizações da sociedade civil e os sindicatos abaixo assinados, instamos a Comissão Europeia a manter regulamentação que proteja a saúde, a natureza, o clima e a justiça social, incluindo os direitos dos trabalhadores e dos sindicatos. A Comissão deve fornecer garantias contra o retrocesso dos padrões sociais e ambientais e para as regulamentações necessárias para a transição socioecológica tanto a nível da UE como nacional. Dar prioridade aos interesses específicos de determinadas empresas em detrimento do interesse público é inaceitável e não é sustentável como estratégia económica.
Os riscos da simplificação errada
A ênfase dada pela nova equipa de Comissários da UE à “competitividade através da simplificação” suscita preocupações. Embora a simplificação de procedimentos possa melhorar a eficiência, existe um risco crescente e muito real de que esta agenda possa traduzir-se na desregulação de protecções essenciais da UE em matéria social [1], ambiental, democrática e de direitos humanos, que alguns intervenientes do sector consideram “onerosas”[2].
A segurança alimentar, a saúde pública, a protecção social, os direitos dos trabalhadores e as regulamentações laborais, o bem-estar animal e as protecções ambientais não são sobrecargas regulamentares — são a base de uma sociedade justa, resiliente e que funciona bem. Os comissários devem honrar os compromissos assumidos durante as audições [3] para garantir que a simplificação não equivale a desregulação nem prejudica os objectivos políticos do Acervo Comunitário da UE. Infelizmente, já constatamos discrepâncias entre as garantias dadas e os planos que estão a ser elaborados – muitas vezes até a um ponto perigoso[4].
Por exemplo, ao abrigo de uma regra do tipo “entra um, sai um”, a introdução de novas medidas críticas de eficiência energética poderia exigir a eliminação de outra regulamentação considerada parte da “sobrecarga regulamentar”[5]. Esta abordagem é profundamente errada e corre o risco de comprometer as próprias estruturas necessárias para a transição verde e justa. Da mesma forma, ao reduzirem-se os requisitos de comunicação sem se considerar os objectivos políticos que prosseguem corre-se o risco de comprometer a aplicação efectiva do Acervo Comunitário da UE. Os planos da Comissão para alterar as leis da UE relacionadas com o desenvolvimento sustentável e a justiça social, como as directivas sobre a sustentabilidade empresarial e a diligência devida, só foram adoptados recentemente, e no entanto, a sua revisão iminente é um dos primeiros resultados do lobby empresarial.
A desregulação não é a resposta
Os desafios enfrentados por determinados sectores não se devem à regulamentação excessiva, mas sim à incapacidade dos governos e das empresas em planear com antecedência, investir e adaptar-se às mudanças necessárias. Por exemplo, a crise na indústria automóvel alemã não resulta de demasiada regulamentação, mas sim da falta de inovação e visão e de uma transição tardia para os veículos eléctricos. As empresas continuaram a dar prioridade ao motor de combustão em vez de seguirem um modelo de negócio à prova do futuro e confiaram na sua influência através do lobby para manterem o status quo da primazia dos veículos movidos a combustíveis fósseis, sem terem devidamente em conta os contextos climáticos e de inovação globais. [6] Qualquer desregulação iria agora criar incerteza, penalizaria os pioneiros e aqueles que investiram somas significativas para alcançar os líderes emergentes fora da UE. Abriria assim as portas a uma concorrência desleal e recompensaria os atrasados — o que seria contraproducente para a inovação e a sustentabilidade.
Como pode a economia beneficiar de regulamentações fortes
Longe de prejudicar o crescimento económico, a implementação e a aplicação das leis ambientais da UE poderão poupar à economia da UE cerca de 55 mil milhões de euros por ano em custos relacionados com a saúde e o ambiente[7]. Agências reguladoras e de licenciamento bem equipadas e com recursos adequados a nível nacional e europeu são cruciais para a entrega atempada das licenças e a execução necessária. É claro que a inacção e a negligência na aplicação da lei também têm um custo. Tragédias recentes, como o desastre das cheias em Valência, ilustram os perigos de desmantelar sistemas concebidos para proteger as pessoas e os ecossistemas. A dissolução das unidades de coordenação de emergência e o desrespeito pelos princípios do planeamento urbano agravaram os impactos da crise climática [8], conduzindo a tragédias humanas e a imensos danos materiais. Isso poderia ter sido evitado se tivessem sido aplicadas as regulamentações locais e nacionais. As nossas sociedades precisam de regras, de governação e da capacidade de que essas regras sejam aplicadas a todos de igual forma. Estas regras devem ser aplicadas através de inspectores do trabalho, inspectores fiscais, etc.
Regulamentos para uma sociedade próspera
A legislação deve ter como objectivo maximizar os benefícios para a sociedade, e não minimizar os custos para as empresas. Deve centrar-se na responsabilidade de agir, respondendo aos custos sociais, humanos e mais amplos da inacção, e não aos custos de curto prazo da acção.1 As regras e os regulamentos são as ferramentas que ajudam a sociedade a evoluir, através do exercício da democracia a todos os níveis. Repetir o mantra de que “há muita regulação” não contribui em nada para resolver os desafios mais urgentes da Europa. Pelo contrário, a desregulação das protecções essenciais iria aprofundar a desigualdade e a insegurança entre os europeus, minando a confiança dos cidadãos nas instituições públicas e alimentando as narrativas dos movimentos antidemocráticos que exploram estes receios para obter apoio eleitoral.
A Comissão Europeia deve liderar com ousadia e integridade, garantindo que as regulamentações da UE dão prioridade ao bem-estar público em detrimento dos interesses das transnacionais. A capacidade da Europa para enfrentar a crise climática, da biodiversidade e da poluição e para promover a justiça social e o progresso depende dessa liderança.
Para garantir um futuro justo e sustentável para a Europa, apelamos à Comissão Europeia para que:
- Mantenha, complemente, fortaleça e implemente regras que permitam uma transformação profunda, socialmente justa e ecológica das nossas sociedades.
- Forneça garantias sólidas de que a “simplificação” não irá obstruir ou atrasar as regulamentações necessárias para a transição socioecológica tanto a nível da UE como nacional.
- Impeça qualquer retrocesso nos padrões sociais, ambientais e de direitos humanos.
- Assegure que a aplicação das leis existentes e dos novos regulamentos da UE:
– Responsabilize as empresas pelos seus impactos sociais e ambientais.
-Promova o diálogo social, a participação activa dos cidadãos e reforce a governação democrática.
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1. O custo da inação:
Clima: O Fórum Económico Mundial estima que por cada dólar investido hoje na adaptação climática, podemos evitar entre 2 a 10 dólares em custos futuros.
Biodiversidade, Água, Ar e Solo: A Agência Europeia do Ambiente (AEA) informa que a perda de serviços do ecossistema poderá custar à UE centenas de milhares de milhões de euros anualmente. Só a degradação dos solos custa à Europa pelo menos 97 mil milhões de euros por ano, sendo que os custos da inacção superam seis vezes os da acção . Estes custos prejudicam principalmente os agricultores e a sociedade em geral.
Poluição do ar: Entre 2012 e 2021, a poluição atmosférica industrial proveniente das maiores indústrias da UE custou entre 2,7 e 4,3 mil milhões de euros. Investigadores salientam que as únicas medidas de mitigação viáveis incluem controlos rigorosos da poluição, a eliminação gradual dos combustíveis com elevado teor de carbono e a eletrificação.
Saúde: A Comissão Europeia estimou que os benefícios para a saúde decorrentes da proibição das substâncias químicas mais nocivas presentes nos produtos de uso quotidiano são dez vezes superiores aos custos para a indústria.