“A condição económica modela sempre tudo, e não é só na Justiça” – palavras de conteúdo óbvio mas significativo quando pronunciadas pela ministra da Justiça, Francisca Van Dunem. Tanto mais, quando à pergunta “Para quando a adaptação das custas judiciais ao rendimento dos cidadãos?”, a ex-ministra responde: “Nós falamos sobre isso várias vezes e o Governo apresentou ao Parlamento uma proposta que não foi aprovada nesta legislatura. Obviamente, será um tema que o próximo Governo terá de ter em atenção. É verdade que nós temos uma realidade – e os relatórios internacionais dizem isso – em que, do ponto de vista do apoio judiciário, Portugal é dos países que mais paga, embora depois pague menos per capita. O que significa que há mais gente carente deste apoio do que em situações comparadas.”
A Justiça em Portugal é, sabemo-los todos os que já por ela passaram ou precisavam de ter passado mas não tiveram meios para tal, extremamente morosa, opaca e até incompetente. E, conforme afirma a ministra, mais desfavorável a gente carente, do que noutros países.
A nível global, o facto de que “A condição económica modela sempre tudo, e não é só na Justiça” revela-se na área da Justiça em toda a sua extensão no sistema ISDS (Investor-State Dispute Settlement), um sistema superior de “Justiça”, exclusivo para multinacionais processarem estados (e nunca o inverso) quando a legislação não lhes convém – com figuras jurídicas como “legítimas expectativas de lucro” e “tratamento justo e equitativo” que os três árbitros privados envolvidos interpretam com elevado grau de discricionariedade.
À luz deste sistema, os tribunais nacionais são considerados incompetentes ou menos propícios – o que não admira, já que, no ISDS, o rendimento dos árbitros aumenta quando aumenta a procura pelos seus serviços, ou seja, é-lhes favorável decidir em abono do investidor.
Os casos de ISDS aumentaram exponencialmente nos últimos anos, porque permitem às multinacionais obter indemnizações multimilionárias pagas pelos estados, ou seja, pelos cidadãos. As abrangentes críticas ao sistema, oriundas de diversos sectores, em especial de académicos, juristas e da sociedade civil, acabaram por pressionar a Organização Mundial do Comércio (OMC) a encetar um processo de reforma – processo que se encontra actualmente em curso, estando precisamente nesta semana de 14 a 18 de Outubro a decorrer em Viena a sessão de trabalho do respectivo grupo de trabalho da UNCITRAL (Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional) da OMC.
Foi também por pressão da sociedade civil europeia e do próprio Parlamento Europeu, em especial entre 2014 e 2016, no contexto das negociações do TTIP (acordo de comércio livre e investimento EU-EUA), que a Comissão se viu obrigada a dar passos musculados para reformar o ISDS, no sentido de assegurar a perversidade da sua consolidação e institucionalização.
É assim que no acordo de comércio e investimento com o Canadá (conhecido por CETA), aparece não já o ISDS, mas o ICS (Investment Court System), em que algumas melhorias processuais foram adoptadas, mantendo porém o essencial dos privilégios para as multinacionais.
Mas a UE quer ir muito mais longe nesta área da protecção especial para investidores, estando a negociar ao nível da UNCITRAL o Multilateral Investment Court (MIC). Um tribunal exclusivo ao serviço das multinacionais que, com algumas melhorias processuais, continua a mais não ser do que a expressão clara de que “A condição económica modela sempre tudo”.
Para quem considera esta justiça estruturalmente injusta está presentemente a decorrer a nível europeu uma petição exigindo o fim do ISDS e sistemas afins, que já conta com 596.834 subscrições, das quais mais de 4.500 em Portugal.
17/10/2019 by
https://aventar.eu/2019/10/17/como-a-condicao-economica-modela-a-justica/