No passado dia 15 de Junho, na reunião plenária da Assembleia da República, o deputado Rui Tavares, do partido LIVRE, fez uma intervenção centrada no Tratado da Carta da Energia (TCE), nomeadamente nas suas implicações geopolíticas, ambientais, sociais e democráticas. Nesta ocasião, o deputado anunciou que o LIVRE apresentou um projecto de resolução, que irá brevemente a votos, em que recomenda ao governo português que considere a denúncia do Tratado da Carta da Energia (Projeto de Resolução n.º 110/XV).
Rui Tavares começou por se focar nas motivações europeias para a celebração deste tratado, nos anos 90, e de como a ambição da Europa Ocidental em assegurar acesso fácil a combustíveis fósseis a fez refém consciente de regimes e companhias petro-oligárquicos da Ásia Central e da Rússia. Isto porque, graças a este tratado, foi garantido às companhias de combustíveis fósseis a possibilidade de processarem Estados se a implementação de políticas públicas afectassem as suas expectativas de lucro futuro e assim de receberem indemnizações milionárias como forma de compensação por esta “perda”. Não obstante o facto de esta possibilidade já constituir por si só uma enorme ameaça, os processos levantadas ao abrigo do TCE estão também enquadrados no sistema ISDS, o qual prevê que a resolução de litígios entre os investidores e os estados seja feita através de tribunais privados e sem escrutínio democrático que, como referiu o deputado, “sistematicamente ou na grande maioria dos casos decidem a favor das companhias petrolíferas e das outras companhias que negoceiam em combustíveis fósseis.”
Após sumariar as implicações devastadoras do Tratado da Carta da Energia e mostrar de forma clara o enorme problema que ele constitui, Rui Tavares frisou a importância de denunciar o tratado, isto é, de optar pela saída, de acordo com as normas e meios legais para o efeito. Entre outros, a França, o Luxemburgo e a Bélgica já se mostraram favoráveis a isto – algo que o deputado mencionou e que contrapôs à situação em Portugal, onde nem sequer foi promovido o amplo debate sobre o Tratado da Carta da Energia como foi recomendado ao governo na resolução 67/2021, aprovada na Assembleia da República. Neste ponto, Rui Tavares pôs o dedo na ferida: O governo Português limita-se meramente a seguir a linha da Comissão Europeia e continuar a apoiar os esforços para a modernização do TCE que, como Rui Tavares incisivamente descreveu, são inglórios pelo facto de serem ao mesmo tempo tímidos demais e ambiciosos demais. Nas palavras do deputado, estes esforços são tímidos demais “porque mesmo que resultassem, não acabavam com o problema dos tribunais privados que decidem contra o interesse público” e ambiciosos demais “porque, precisando de unanimidade, é óbvio que nem esses esforços de modernização da Comissão Europeia chegarão a bom porto”.
Rui Tavares concluiu, frisando que “para uma política que seja de descarbonização, mas que seja também de uma descentralização em termos de produção de energia, de uma verdadeira democratização energética de que nós precisamos na Europa, de uma soberania energética portuguesa e europeia, é preciso dar esse passo: denunciar o Tratado da Carta da Energia” e reforçando que Portugal deve posicionar-se favoravelmente à saída colectiva do Tratado da Carta da Energia ou, caso esta hipótese não seja viável, avançar para a saída unilateral deste tratado obsoleto, ambos aspectos incluídos na resolução apresentada pelo partido LIVRE.
Após a sua intervenção, Rui Tavares respondeu às questões colocadas por outros deputados presentes como é prática normal nas sessões plenárias, sendo que é importante fazer-se a ressalva de uma dessas questões em particular, devido ao seu carácter deturpador e factualmente desinformado. O deputado Hugo Carvalho (PSD) reduziu a proposta de saída deste tratado a “uma discussão que a esquerda adora que é rasgar contratos” e de não cumprir compromissos assumidos, tendo ainda defendido o TCE como instrumento importante para a estimulação do investimento em energias renováveis. Acerca disto, o deputado referiu, ipsis verbis, que “aqui ao lado em Espanha, quando o governo de Rajoy rasgou os contractos todos unilateralmente com as produtoras de energia renovável que tinha no seu país, foi exactamente este tratado que as protegeu e ainda hoje lá estão a funcionar porque de outra maneira não estavam”. Ora, para ambos os casos, há esclarecimentos baseados em evidência a fazer, algo que faltou na intervenção de Hugo Carvalho. Quanto à menção a rasgar contratos, Rui Tavares respondeu de forma certeira e nada há a acrescentar – “Rasgar o tratado ou cumprir o tratado? Qual das hipóteses acha o deputado Hugo Carvalho que eu defendi ali de cima, quando disse que ele próprio tem uma cláusula de denúncia e que depois tem que se cumprir o tempo de saída do contrato? Cumprir o contrato, inclusive quando ele tem cláusulas de denúncia para sair do contrato, não é rasgá-lo, é cumprir com ele. O que o sr. deputado defende é algo a que na minha aldeia se chamava “negócios a perder estão sempre feitos” – é ficar dentro do contracto mesmo quando o contrato se revela datado e nos prejudica.” Já em relação ao caso de Espanha dado como exemplo, estudos como este, acerca do “sonho solar” espanhol, escrutinaram os processos de arbitragem de investimento contra Espanha e revelaram que o Tratado da Carta da Energia apenas beneficiou os investidores transnacionais e os escritórios de advogados especializados, em detrimento da efectiva e necessária transição energética. Além disto, este estudo também expõe o facto de não haver provas de que acordos como o TCE atraiam investimento, de muitas empresas que beneficiam destes acordos serem empresas de fachada – empresas estrangeiras de “caixa de correio”, com poucos ou nenhum empregado, criadas para transferir lucros e evitar o pagamento de impostos – e de as verdadeiras PME (Pequenas e Médias Empresas) não verem vantagens neste tipo de tratados.
A intervenção de Rui Tavares na Assembleia da República e o projecto de resolução apresentado pelo LIVRE têm uma enorme relevância e juntam-se assim aos esforços que a sociedade civil tem vindo a realizar para travar este tratado tóxico. A TROCA saúda por isso veementemente esta iniciativa e coloca-se à disposição para quaisquer diligências que daqui advenham. Recordamos ainda que no dia 24 de Junho terá lugar a Conferência da Carta da Energia, momento em que será dado a conhecer o futuro deste tratado e em que assim ficaremos também a saber que destino nos espera.