Decorreu em grande secretismo, nos passados dias 20 a 23 de Janeiro, a primeira audiência do tribunal internacional privado que vai julgar Portugal a propósito do caso BES.
Um caso que vem reforçar a necessidade urgente de um “passo seguinte – rever ou denunciar os BITs com cláusulas de arbitragem internacional – constituiria uma verdadeira “reforma estrutural” na área da Justiça, cujo resultado seria proteger os contribuintes de ameaças como aquela com que, ainda à sombra do BES, continuamos a ser confrontados.”.
Em 2025 o governo português tem a possibilidade de denunciar quatro dos 34 tratados bilaterais de investimento (BITs) em vigor que contêm ISDS, antes da sua prorrogação.
Agradecemos ao Jornal Público a oportunidade de levar ao conhecimento dos cidadãos este caso, em que inequivocamente, também por ausência de transparência de todo o processo, continuam a ser os interesses económico-financeiros das grandes empresas a serem beneficiadas em detrimento dos cidadãos (lesados do BES) e da Justiça.
Reproduzimos de seguida o artigo:
“O processo decorre desde 2022, quando dois fundos de investimento norte-americanos, através das suas offshores nas Ilhas Maurícias, apresentaram queixa contra o Estado português, por questões relacionadas com o processo de liquidação do Banco Espírito Santo, através do chamado Investment-State Dispute Settlement (ISDS), um sistema de arbitragem paralelo à justiça nacional e ao qual os clientes particulares do banco – os lesados do BES – não têm acesso.
O recurso a este mecanismo por parte dos fundos é possível porque, desde os anos 80, Portugal assinou dezenas de Tratados Bilaterais de Investimento (BITs) com outros países, e todos (com uma única excepção, o BIT Portugal-Marrocos, de 1988) incluem cláusulas ISDS. A arbitragem internacional, – em alguns casos com pequenas melhorias processuais, – consta também em acordos de comércio celebrados pela União Europeia, aos quais Portugal deu o seu consentimento, como é o caso do CETA, com o Canadá. Uma vez que Portugal não tem nenhum acordo de investimento bilateral com os Estados Unidos, os fundos norte-americanos em causa – Elliott Management e Silver Point Capital – usaram uma manobra legal, transferindo os seus créditos no BES para empresas «caixa-de-correio» que detinham nas Ilhas Maurícias. Deste modo, alegam ser investidores mauricianos, consequentemente abrangidos pelo BIT Portugal-Ilhas Maurícias, de 1997, o que lhes permite processar o Estado português através do ISDS.
Acresce a isto o facto de a Elliott e a Silver Point terem comprado os seus créditos do BES, a baixo preço, já depois do colapso do banco, presumivelmente com o intuito de lucrar à custa de processos judiciais contra o Estado português. Este é o modelo de lucro de um tipo de empresas geralmente designadas por “fundos-abutre”. Precisamente o fundador e presidente da Elliott, Paul Singer – um apoiante de Donald Trump que contribuiu com quase 40 milhões de dólares para o Partido Republicano nas eleições de 2024, – é um pioneiro desse método de investimento, com um longo historial de casos semelhantes contra países como a Argentina, o Peru e o Congo.
Um dos aspectos mais problemáticos do ISDS é a enorme falta de transparência dos procedimentos. Esse secretismo demonstra-se também no caso BES: a única informação acessível ao público sobre a audiência realizada em Janeiro consta de um documento publicado no site do ICSID (a instituição de arbitragem internacional do Banco Mundial), onde é referido que todas as trocas de informação serão confidenciais. Os procedimentos não foram abertos ao público e as gravações e transcrições não serão publicadas; os nomes das duas testemunhas chamadas pelos fundos de investimento estão rasurados na versão pública do documento. Sabe-se, no entanto, que a audiência incidiu apenas sobre matérias de jurisdição, e não sobre o conteúdo concreto das queixas dos fundos.
As origens do caso remontam à contratação, em Janeiro de 2014, do ex-ministro do PSD, José Luís Arnaut, para o “International Advisory Board” da Goldman Sachs. Depois de contactos, em Maio de 2014, entre este ex-governante e Ricardo Salgado, a Goldman Sachs concedeu um empréstimo ao BES, no valor de 835 milhões de dólares, para financiar um negócio de extracção de petróleo na Venezuela. O empréstimo foi feito através de filiais no Luxemburgo, sendo no entanto regido pela lei inglesa. Meses depois, no contexto da resolução do BES e da criação do Novo Banco, o Banco de Portugal decidiu manter o empréstimo da Goldman Sachs no “banco mau”, uma decisão regulatória que está na origem do actual processo contra Portugal.
Esta não é, porém, a primeira vez que a capacidade de regulação do Estado Português é posta em causa pelo ISDS. Em 2018, depois de pareceres da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos e da Autoridade da Concorrência, o então secretário de Estado da Energia, Jorge Seguro Sanches, assinou um despacho exigindo a devolução de 285 milhões de euros que teriam sido pagos em rendas excessivas à EDP. Em resposta, a empresa estatal chinesa Três Gargantas, que é o principal accionista desde o processo de privatização de 2014, ameaçou processar o Estado Português usando o ISDS. Cerca de um mês depois, Seguro Sanches foi substituído e o governo desistiu de reaver as rendas excessivas. Situações como esta, em que a mera ameaça de processo é suficiente para condicionar ou inibir a acção dos governos, são conhecidas como “regulatory chill” e constituem uma profunda ameaça à soberania dos Estados.
Tanto o caso BES como o episódio com a EDP são exemplos do perigo que o ISDS representa, não só para a capacidade de regulação e para a soberania nacional, como também para a igualdade no acesso à justiça – só investidores estrangeiros lhe têm acesso – e, consequentemente, até para a concorrência justa. A falta de transparência e a injustiça inerentes ao sistema tendem a gerar indignação, mas a indignação, por si só, não resolve o problema. A única solução para o problema do ISDS é retirá-lo dos tratados nos quais ainda consta, nomeadamente, revendo ou cessando os BITs assinados por Portugal.
Neste ano de 2025, teremos a oportunidade de denunciar quatro destes tratados antes do seu prazo de prorrogação automática – com a Argentina, o Kuwait, a Tunísia e o Paquistão. Outros nove podem ser terminados a qualquer momento. Um primeiro passo positivo foi dado quando, no ano passado, Portugal saiu do Tratado da Carta da Energia, um acordo multilateral responsável por um número recorde de casos de ISDS. O passo seguinte – rever ou denunciar os BITs com cláusulas de arbitragem internacional – constituiria uma verdadeira “reforma estrutural” na área da Justiça, cujo resultado seria proteger os contribuintes de ameaças como aquela com que, ainda à sombra do BES, continuamos a ser confrontados.”