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Os bem-vindos desaires do monstruoso acordo UE-Mercosul

Os bem-vindos desaires do monstruoso acordo UE-Mercosul

Os bem-vindos desaires do monstruoso acordo UE-Mercosul

Apesar das declarações pró-acordo feitas em cascata por dirigentes da UE e do Mercosul, o acordo comercial continua tremido. E ainda bem, pois o seu articulado cimenta um modelo de “desenvolvimento” do século passado.

São muitos os temas ainda em disputa. O Jornal elDiario.es publicou um artigo que revela as movimentações da UE (como de costume conduzidas em grande secretismo) para lhe adicionar um “instrumento conjunto” – também chamado protocolo adicional -, que foi agora “vazado”. Segundo parece, o resultado foi o oposto ao pretendido, por parte da Argentina e do Brasil. Transcrevemos seguidamente o artigo em tradução nossa, para divulgar o ponto da situação deste absurdo acordo.

Objectivos ambientais, o último obstáculo no acordo impossível entre a UE e o Mercosul

A Argentina e o Brasil olham com desconfiança os requisitos “verdes” europeus, enquanto a França e a Áustria rejeitam um acordo que não garante reciprocidade nos requisitos ambientais.

Irene Castro

Bruxelas – 8 de Abril de 2023

O acordo comercial da UE com o Mercosul (Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai) tem vindo a ser negociado desde o século passado. Foi em 1999 que a Comissão Europeia foi mandatada para iniciar negociações que se prolongaram durante 20 anos até que, em Junho de 2019, se chegou a um “acordo de princípio” que foi aplaudido, entre outros, pela Espanha.

Contudo, os detalhes do articulado – e o facto de que tal acordo teria de ser assinado com o então presidente brasileiro de extrema-direita Jair Bolsonaro – levantaram objecções, sobretudo por parte do Parlamento Europeu e, concretamente, de países como a Alemanha, a França, a Áustria, a Holanda e a Irlanda, entre outros. Nessa altura, a desflorestação da Amazónia e a emergência climática foram os principais argumentos apresentados, para além do reconhecimento mais ou menos explícito das preocupações com o sector agrícola europeu.

Com a UE dividida, o acordo ficou bloqueado. Iniciaram-se então novas conversações – envoltas no secretismo que normalmente caracteriza as negociações em que estão em jogo enormes somas de dinheiro – para acrescentar ao acordo um instrumento conjunto, que incluiria algumas das preocupações relativas à protecção ambiental, aos direitos dos trabalhadores e, especialmente, ao combate à exploração infantil.

O esboço deste documento veio à luz nos últimos dias, através de um grupo de ONGs e, apesar de incluir declarações de intenção pouco ambiciosas ou mesmo insuficientes, não conseguiu desbloquear a questão, que será uma das que irão pairar sobre a cimeira entre a UE e os Estados da América Latina e das Caraíbas (CELAC), a realizar em Bruxelas em meados de Julho, no início da Presidência espanhola.

Do instrumento conjunto consta: “Em conformidade com as decisões do Secretariado da ONU para as Alterações Climáticas, o papel das florestas no que toca às emissões que provocam as alterações climáticas e ao armazenamento de carbono reflectir-se-á nas Contribuições Determinadas a Nível Nacional ao abrigo do Acordo de Paris e nos respectivos relatórios, incluindo as acções para reduzir a desflorestação e aumentar a reflorestação”.

Um caminho difícil

Contudo, o cumprimento desta exigência é complicado, se não inatingível. “O último relatório do IPCC [painel intergovernamental de especialistas em alterações climáticas] afirma muito claramente que, com as políticas existentes no final de 2020, nos encaminhamos para  um aquecimento global médio de 3,2 graus em 2100 e que, em vez de reduzir para metade as emissões globais até 2030 (o que seria necessário para respeitar o limite de aquecimento definido no Acordo de Paris), não haverá reduções de emissões antes de 2030”, contrapõe Tom Kucharz, membro da Ecologistas en Acción e da Coligação Stop UE-Mercosul.

Na mesma linha, o documento reitera a “urgência” de alcançar a meta 15.2 dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável, que define: “Para 2020, promover a gestão sustentável de todos os tipos de florestas, deter a desflorestação, restaurar as florestas degradadas e aumentar a florestação e reflorestação a nível mundial”. Um objectivo que por si só, já é um desafio inatingível. “De facto, nem a UE nem o Mercosul o conseguiram até 2020”, recorda Kucharz.

Além disso, o instrumento contém o compromisso, assumido por ambas as partes, de inverterem e travarem a destruição e degradação da floresta até 2030, estabelecendo um objectivo intermédio de reduzir a desflorestação em, pelo menos, 50% em relação aos níveis actuais até 2025. No caso hipotético de uma aprovação iminente do acordo, o prazo para cumprir este compromisso seria de apenas um ano e meio. “As importações da UE do Mercosul de produtos como a soja, milho, cana-de-açúcar e minerais que contribuem para a desflorestação estão a aumentar, e o acordo irá aumentar ainda mais estas exportações”, explica a organização Ecologistas en Acción.

Apesar da mudança de paradigma ocorrida a nível mundial, com a vitória de Lula da Silva no Brasil e da actual batalha comercial que obriga a UE a olhar para novos mercados como parte do desenvolvimento da sua autonomia estratégica, o acordo comercial com o Mercosul continua a esbarrar em obstáculos que o deixam no limbo.

Apesar de progressos no instrumento conjunto, os países do Mercosul manifestaram-se contra as exigências da UE. Numa declaração conjunta, os presidentes do Brasil e da Argentina expressaram “preocupação com as recentes medidas proteccionistas unilaterais europeias, sob o pretexto de alegadas preocupações ambientais, que podem afectar o equilíbrio do acordo”.

“Salientaram também a necessidade de continuar a contar com um diálogo frutuoso e com instrumentos de cooperação económica eficaz para evitar que as actuais iniciativas da UE, particularmente no quadro do Pacto Ecológico Europeu e dos novos compromissos sobre sustentabilidade ambiental, afectem negativamente os equilíbrios necessários para aumentar o bem-estar económico e social de ambos os blocos”, diz o texto assinado por Lula da Silva e Alberto Fernández.

A Argentina aproveitou o enfraquecimento da Europa devido à guerra para conseguir algumas concessões em questões como os OGM e o biodiesel. Em termos de prazos, quer negociar uma abertura mais progressiva para reduzir o impacto nas empresas que têm mais dificuldades em competir, e ainda aumentar alguns investimentos. Em suma, Fernández aspira a rever o acordo negociado entre os dois blocos após as modificações impostas pelo Pacto Ecológico Europeu e que são prejudiciais para o bloco sul-americano.

“A Argentina manifesta a sua preocupação sobre as decisões em curso na Europa”, reconheceu o alto representante, Josep Borrell, em declarações ao elDiario.es durante a cimeira Ibero-Americana realizada na semana passada em Santo Domingo. “Há ainda muitos passos a dar”, disse o político catalão.

E não é só desse lado do Atlântico que existem dúvidas. Países como a Áustria e a França reiteraram a sua firme oposição ao acordo comercial nos seus termos actuais. A principal exigência é a inclusão de “cláusulas-espelho” que não aparecem nem no pré-acordo de 2019 nem no instrumento conjunto. “Um acordo com os países do continente latino-americano não é possível se eles não respeitarem, como nós, os Acordos de Paris, e se não tiverem as mesmas restrições ambientais e sanitárias que impomos aos nossos produtores”, disse Emmanuel Macron.

O receio das organizações ambientalistas é que o acordo acabe por ser aprovado, ainda que por maioria qualificada, e que seja segmentado de modo a que apenas entre em vigor a parte comercial, que é a parte sob competência da UE, deixando todas as questões relacionadas com a cooperação para posterior ratificação pelos Estados-membros, como aconteceu com o tratado assinado com a América Central, que está em vigor há uma década.

Apesar das dificuldades, Bruxelas está confiante que poderá vir a ser dada luz verde ao acordo nos últimos seis meses do ano e, entretanto, intensificou as visitas ao continente a partir de uma UE que procura desesperadamente reforçar a sua competitividade.