Uma rábula do grupo humorístico Gato Fedorento apresenta um “alpinista” que desce uma montanha e se confronta com um repórter que estranha a sua afirmação de que descer a montanha é muito mais desafiante do que subi-la. A sua justificação é caricata: “um gajo às vezes esquece-se de alguma coisa, esquece-se de alguma coisa em casa, vem a descer, tem de voltar tudo para cima! Esses maricas que sobem montanhas, esquecem-se de uma coisa, descem! Assim também eu!”
É fácil relembrar esta rábula ao ouvir o deputado Nuno Miguel Carvalho, do PSD, na Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas a respeito do projecto de resolução apresentado pela deputada independente Cristina Rodrigues a respeito do Tratado da Carta da Energia. Como já mencionado, o projecto originalmente recomendava ao governo que «diligencie no sentido de garantir a reformulação profunda deste Acordo, nomeadamente com a exclusão de todas as disposições que protegem o investimento estrangeiro em combustíveis fósseis e com a retirada de todas as cláusulas de arbitragem investidor-estado (ISDS), devendo Portugal retirar-se deste Acordo e sustentar o seu termo imediato caso tal não aconteça.»
O deputado relembra que o acordo está neste momento a ser renegociado, mas alerta que as expectativas face a qualquer alteração profunda do acordo na sequência destas negociações devem ser moderadas, já que vários dos países envolvidos têm uma economia muito dependente da exportação de combustíveis fósseis e têm poder de veto. A TROCA acompanha inteiramente o deputado nesta avaliação, que nos parece sensata e realista.
O deputado diz então que seria “desastroso” abandonar o tratado. E porquê? Porque o abandono do tratado activaria a cláusula de caducidade que faria com que o nosso país ficasse sujeito ao acordo por mais 20 anos. Vale a pena repetir: abandonar o tratado seria desastroso porque nos obrigaria a ficar sujeito ao mesmo por mais 20 anos. A alternativa de ficar sujeito indefinidamente é, aparentemente, menos grave. Subir a montanha é mais fácil: se nos esquecermos de alguma coisa, é só descer.
Ao caricato do argumento devem acrescentar-se algumas informações que o tornam mais grave. O Burundi, a Suazilândia, a Mauritânia, e o Paquistão estão na iminência de aderir ao Tratado. O Bangladesh, o Chade, a China (cujo peso no sector energético nacional é bem conhecido), Marrocos, a Nigéria, a Sérvia e o Uganda estão num patamar não muito distante, sendo que o Camboja, a Colômbia, a Guatemala, a Nigéria, o Panamá e a Gâmbia já iniciaram o processo de adesão. Nos próximos dois ou três anos, todos estes países já podem ser parte do Tratado da Carta da Energia. Esperar dois ou três anos para abandonar o tratado significa que mais tarde a cláusula de caducidade também se irá aplicar a eles. Quaisquer que sejam as modestas concessões obtidas nas negociações, o TCE tornar-se-á um obstáculo maior ao combate às alterações climáticas e às finanças públicas dentro de dois ou três anos do que aquele que representa hoje.
No entanto, pode ser de ainda maior gravidade a afirmação feita pelo deputado José Mendes (PS) respondendo à proposta de pôr fim à existência de mecanismos ISDS afirmando que: «Não há possibilidade de capital internacional investir em energia em diferentes geografias se não tiver um processo qualquer de arbitragem que dê a respectiva protecção». No nosso entender é de enorme gravidade que um deputado aparente desconhecer que os tribunais nacionais podem dar ao investimento internacional as protecções que a lei portuguesa confere. É falso que não exista investimento sem mecanismos ISDS. A tal ponto é falsa a afirmação que muita da literatura científica sobre o tema nem sequer é capaz de encontrar provas de que o ISDS tenha impacto no Investimento Directo Estrangeiro, muito menos um impacto determinante. Uma meta-análise recente de 74 estudos concluiu que o efeito dos acordos de investimento no aumento do investimento directo estrangeiro “é tão pequeno que pode ser considerado nulo”.
É lamentável que, neste ponto, o deputado socialista tenha escolhido adoptar uma posição de extremismo neoliberal que ultrapassa o Presidente Joe Biden e até o ex-Presidente Donald Trump, ao defender um sistema de justiça privada que se sobrepõe aos estados para ameaçar as finanças públicas e o Planeta, entre outros valores fundamentais.
É essencial que os deputados de todos os partidos saibam que os cidadãos estão atentos e não querem que Portugal continue a fazer parte de um Tratado no qual não são as empresas poluidoras quem têm de pagar à sociedade pelos danos ambientais provocados: ao invés, são elas que exigem indemnizações pagas pelos contribuintes se os governos ousarem agir para proteger o ambiente.
Urge assinar a petição para travar o Tratado que bloqueia o Acordo de Paris.