No início de Fevereiro, veio a público um documento oficioso elaborado pelos serviços da Comissão Europeia sobre as próximas etapas no que respeita ao Tratado da Carta da Energia, com o “objectivo de orientar um debate com os Estados-Membros sobre as possíveis opções disponíveis para a UE, Euratom e Estados-Membros no que diz respeito à sua permanência no Tratado da Carta da Energia (TCE), à luz da ausência de posições da UE e Euratom sobre a modernização do TCE e dos resultados da Conferência da Carta da Energia de 22 de Novembro de 2022”.
Embora no documento constasse que o mesmo “não foi adoptado ou aprovado pela Comissão Europeia e quaisquer pontos de vista expressos são as opiniões preliminares dos serviços da Comissão e não podem, em circunstância alguma, ser considerados como uma posição oficial da Comissão”, logo no dia seguinte um porta-voz da Comissão Europeia veio anunciar que a Comissão recomenda aos países-membros da UE que o bloco “leve a cabo uma retirada coordenada” do Tratado da Carta da Energia.
Sendo esta viragem da Comissão de saudar, é também importante analisar as 3 opções que a Comissão aponta no documento acima referido, como possíveis opções para o passo seguinte em relação ao TCE:
Opção 1
Uma retirada coordenada da UE, da Euratom e dos Estados-Membros do TCE
Opção 2
Saída da UE e da Euratom, com autorização prévia para alguns Estados-Membros permanecerem num TCE modernizado (esta opção pressupõe a adopção da modernização do TCE)
Opção 3
Uma decisão do Conselho que permita primeiro a adopção da modernização e paralelamente o início dos procedimentos para a saída da UE e da Euratom (de forma coordenada).
No mesmo documento, os serviços da Comissão “consideram a Opção 1 como a mais adequada, tendo em conta as diferentes dimensões deste debate”.
E ainda consideram que: “A nossa avaliação geral é que formas de protecção do investimento como o fornecido pelo TCE não são necessários para atrair investimentos na UE, dados os níveis de acesso à justiça e ao Estado de direito – especialmente não no sector energético, onde o mercado energético da UE é dinâmico e muito atractivo.”
Tendo em conta que sete países já anunciaram que vão retirar-se do TCE, mas os outros estados-membros ainda não decidiram ou até se opõem à saída, é importante analisar as respectivas implicações das três opções indicadas pela Comissão aos Estados-Membros. Foi isso que fez a Climate Action Network (CAN) Europe, num documento que seguidamente traduzimos quase integralmente. A análise detalhada da CAN demonstra claramente que a saída coordenada do TCE é a melhor Opção (Opção 1).
Avaliação das opções para prosseguir em relação ao Tratado da Carta de Energia
A Climate Action Network (CAN) Europe saúda o documento da Comissão sobre os próximos passos da UE e da Euratom em relação ao Tratado da Carta da Energia. Em particular, concordamos plenamente com a opinião dos serviços da Comissão de que a saída da UE é inevitável e que uma saída coordenada da UE e de todos os Estados-Membros é, de longe, a melhor opção.
Porque é inevitável a saída da UE?
- A reforma do TCE não tem suficiente apoio político: O Parlamento Europeu rejeitou-a, considerando-a insuficiente e apelou à Comissão e aos Estados-Membros para iniciarem uma retirada coordenada. Mais de 1 milhão de cidadãos assinaram uma petição pela retirada e sete dos Estados-Membros da UE já anunciaram a decisão de sair.
- Não há cenário plausível para que a reforma entre em vigor se a UE continuar como membro do TCE. A ratificação por parte da UE requer o consentimento do Parlamento Europeu e de todos os Estados-Membros da UE (ver este blog jurídico), incluindo daqueles que pretendem sair ou já saíram.
- Mesmo na sua versão reformada, o TCE é um obstáculo para políticas climáticas e energéticas soberanas. O Alto Conselho para o Clima da França concluiu que o TCE, “mesmo na versão modernizada, não é compatível com o ritmo de descarbonização do sector energético e a intensidade dos esforços de redução de emissões que são necessários até 2030, conforme reiterado pela AIE (Agência Internacional da Energia) e avaliado pelo IPCC” (Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas). Recentemente, investidores também começaram a instaurar processos contra as políticas adoptadas em resposta à crise dos preços da energia (ver, por exemplo).
- A versão actual do TCE é fundamentalmente incompatível com a legislação da UE e a única maneira de UE e os Estados-Membros corrigirem isso é uma saída coordenada.
Porque é que a saída coordenada (Opção 1) é a melhor opção?
- Esta é a abordagem mais segura e coerente: dada a actual crise dos preços de energia e a aceleração das mudanças climáticas, os estados precisam de ter pleno poder regulatório para combater a pobreza energética e gerir uma transição energética rápida e justa. Uma retirada coordenada combinada com um acordo inter-se para atestar a inaplicabilidade do TCE dentro da UE e neutralizar a cláusula de caducidade quando necessário, seria a salvaguarda mais forte contra dispendiosas reivindicações ISDS. Mais de 65% dos casos de ISDS ao abrigo do TCE são intra-UE, o que deixaria de ser possível sob a Opção 1. Uma saída individual (Opção 2 do documento), pelo contrário, criaria muitos riscos e prejudicaria a unidade da UE.
- A opção mais abrangente: A UE poderia abrir a porta para que outras partes contratantes do TCE, não pertencentes à UE, aderissem à retirada coordenada, neutralizando a cláusula de caducidade.
- A Opção 1 é a mais correcta: o Parlamento Europeu já declarou, na sua Resolução de 24 de Novembro de 2022, que daria o seu consentimento a esta Opção. A Opção 1 seria a mais simples para as instituições da UE e os Estados-Membros, com um mínimo de carga administrativa e um consenso político fácil de construir.
Quais são os riscos e as limitações das outras opções?
Opção 2
- Politicamente inadequada: alguns Estados-Membros permaneceriam como membros do TCE, enquanto outros se retirariam. Isso prejudicaria a coesão do bloco, não apenas ao nível da representação externa da UE, pondo em causa a unidade da UE, mas também ao nível do mercado interno. Criaria condições desiguais, afectando potencialmente a aplicação da legislação da UE nos Estados-Membros, devido aos diferentes regimes de responsabilidade.
- Incerteza jurídica: A aplicação das duas versões, (em parte do antigo e em parte do novo TCE) em relação aos diferentes Estados-Membros da UE, criaria uma situação jurídica extremamente complexa.
Haveria uma grande incerteza sobre os aspectos do TCE aos quais os Estados-Membros ou a UE estão vinculados. Seria um cenário caótico, de alta insegurança jurídica.
- Viabilidade política duvidosa: O Parlamento Europeu já indicou que é a favor de uma retirada coordenada e vê o TCE como um obstáculo à capacidade dos Estados-Membros de cumprirem as suas obrigações climáticas e regularem os seus sistemas de energia em resposta à actual crise. É, pois, altamente duvidoso que aprovasse esta abordagem.
- Procedimentos longos e onerosos: Exige actos individuais que autorizam os Estados-Membros da UE a permanecerem como partes contratantes do TCE. Também levaria muito tempo até que o TCE reformado se aplicasse aos restantes Estados-Membros da UE, dada a necessidade de ser ratificado por ¾ das partes contratantes do TCE
- Todos os esforços diplomáticos e políticos recairiam sobre os restantes Estados-Membros: A Comissão deixou claro que só autorizaria os Estados-Membros a permanecerem num TCE reformado. A responsabilidade de reformar o TCE e de assegurar a sua rápida ratificação recairia apenas sobre aqueles que decidissem ficar – incluindo a coordenação diplomática entre eles, o contacto com as partes do TCE não pertencentes à UE e o financiamento do Secretariado do TCE. Nesta tarefa, não contariam nem com o apoio de outros países maiores da UE, nem com os serviços da Comissão. Se falharem, teriam de se retirar de qualquer maneira.
Opção 3
- Pesadelo legal e político: Esta é a pior opção de todas. O TCE reformado só entra em vigor quando ¾ das partes contratantes o ratificarem. Na melhor das hipóteses, isso levaria anos; mas as probabilidades de que isso aconteça são muito pequenas, uma vez que os Estados não-membros da UE saberiam que a UE pretendia sair logo que o tratado reformado entrasse em vigor. Isso tornaria a UE refém dos interesses de nações estrangeiras.
- Politicamente insustentável: pelo menos sete Estados-Membros já decidiram retirar-se, e vários deles rejeitaram os resultados da reforma em Novembro passado. O Parlamento Europeu também deixou claro que rejeita os resultados da reforma, pois não estão alinhados com o Pacto Ecológico Europeu, nem com a nova abordagem da UE sobre política de investimento. O Parlamento Europeu já exigiu reformas mais abrangentes da política de investimento da UE no relatório de iniciativa do ano passado sobre o futuro da política de investimento da UE, que obteve um apoio esmagador de todo o espectro político.
- Maior risco de casos ISDS: os Estados-Membros ficariam expostos a um risco muito maior de casos de arbitragem devido à inclusão no tratado de novas tecnologias não testadas, tais como a CAC (Captura e Armazenamento de Carbono) ou o hidrogénio, sobre as quais os quadros políticos ainda são exploratórios. Os governos da UE não deveriam acorrentar a si próprios através do TCE quando ainda estão a testar qual é a melhor abordagem a estas tecnologias. Tal como a Comissão deixou claro, o TCE é desnecessário para atrair investimento estrangeiro para a UE.
- Incerteza sobre os efeitos: a principal justificação invocada para a Opção 3 é que ela tentaria actualizar as disposições desactualizadas de investimento e energia do TCE; porém não está claro se, após a retirada, a cláusula de caducidade prolongaria de facto a versão antiga ou a modernizada do TCE – provavelmente a versão modernizada só se aplicaria a litígios em que tanto o Estado de origem como o Estado anfitrião tivessem ratificado ou aplicado provisoriamente a modernização.
14 de Fevereiro de 2023
Elaborado por: Climate Action Network (CAN) Europa
Traduzido por: TROCA – Plataforma por um Comércio Internacional Justo