
TCE
O Tratado Carta da Energia é um acordo de investimento envolvendo vários países europeus e da Ásia central. Não existe nenhum acordo responsável por tantos casos ISDS conhecidos como o Tratado Carta da Energia. É um perigo para o combate às alterações climáticas, para o ambiente em geral e para as finanças públicas dos países envolvidos.
Em Dezembro de 1994, em Lisboa, sem um debate público significativo, entrou em vigor um obscuro acordo internacional, o Tratado da Carta da Energia (TCE), que estabelece um quadro multilateral para a cooperação transfronteiriça no sector da energia. O tratado cobre todos os aspectos das actividades comerciais relacionadas com o sector energético, incluindo comércio, transporte, investimentos e eficiência energética. Inicialmente, no final da Guerra Fria, o TCE visava integrar os sectores energéticos dos estados do Bloco de Leste em dissolução, com amplos recursos energéticos e a necessitar de investimento, e os da Europa Oriental, a precisar de diversificar as suas fontes de energia, em mercados europeus e mundiais mais amplos. Hoje, o TCE aplica-se a mais de 50 países que se estendem desde a Europa Ocidental até à Ásia Central e ao Japão.
O tratado tem como objectivo estimular os investimentos estrangeiros directos e o comércio transfronteiriço global. No entanto, actualmente não há evidências de que o acordo facilite o investimento ou reduza o custo da energia. Como se verá, outros interesses, contrários aos da generalidade dos cidadãos, movem os proponentes deste acordo.
O tratado é juridicamente vinculativo e inclui procedimentos de resolução de litígios entre investidor e estado (ISDS), que são a pedra angular do TCE. As cláusulas de ISDS do TCE dão aos investidores estrangeiros no sector da energia amplos poderes para processarem directamente os estados em tribunais internacionais constituídos por três advogados privados que desempenham o papel de árbitros. Através deste mecanismo as grandes empresas podem receber do estado quantias exorbitantes como indemnização por medidas governamentais que alegadamente prejudiquem os seus investimentos, seja directamente por meio de expropriação ou indiretamente por legislação. Até hoje, os governos foram obrigados ou concordaram em pagar mais de 46 mil milhões de euros em indemnizações.
Nenhum acordo de comércio no mundo desencadeou mais acções judiciais entre investidor e estado (ISDS) do que o TCE, com mais de 114 queixas apresentadas ao abrigo do tratado, sendo a tendência crescente pois, desde 2013, foram registadas, pelo menos, 75 novas queixas. É também o único acordo que permite arbitragens ISDS contra a UE como um todo.
O mecanismo de ISDS previsto no tratado tem inúmeras lacunas que beneficiam as grandes empresas em relação aos interesses do estado e dos cidadãos. Entre elas estão a permeabilidade aos interesses de escritórios de advocacia e fundos de investimento que potencialmente beneficiam de decisões favoráveis às grandes empresas.
Os escritórios de advocacia são os principais impulsionadores do aumento dos casos ISDS ao abrigo do TCE sendo que apenas cinco escritórios de advocacia estiveram envolvidos em quase metade de todos os processos que se sabe envolverem o TCE. Vários altos funcionários do Secretariado do TCE estiveram em escritórios de advocacia antes e/ou depois de trabalharem no Secretariado. Uma vez que a mesma pessoa pode actuar como árbitro e advogado em diferentes casos, há preocupações crescentes sobre conflitos de interesse.
Os fundos de investimento estão cada vez mais estabelecidos em arbitragens de TCE. Esses fundos de investimento financiam os custos legais em litígios entre investidor e estado em troca de uma percentagem da indemnização concedida.
Além destas lacunas, graças à definição excessivamente ampla de “investidor” e “investimento” do TCE, os estados podem ser efectivamente processados por investidores de todo o mundo, incluindo por investidores de países que não tenham ratificado o TCE, através de empresas de fachada.
Em Março de 2018, o Tribunal de Justiça da UE decidiu que os casos ISDS intra-UE (a maioria dos casos do TCE) ao abrigo de tratados bilaterais violam a lei da UE ao sobreporem-se aos tribunais da UE e dos seus estados. O mesmo argumento também pode ser aplicado ao TCE.
O TCE tem sido uma ferramenta poderosa para desencorajar os governos de tomarem medidas de transição para energias menos poluentes. A reivindicação de 1,26 mil milhões de euros da gigante energética Vattenfall devido a um aumento dos padrões ambientais para uma central de energia a carvão na Alemanha forçou o governo local a flexibilizar a legislação para resolver o caso. A companhia de petróleo Rockhopper reivindica centenas de milhões de euros de hipotéticos lucros que um campo de petrolífero poderia ter dado se a Itália não tivesse proibido novos projectos de extração de petróleo e gás na costa. O tratado tem também efeitos negativos no custo da energia para os cidadãos. Sob o TCE, a Bulgária e a Hungria foram processadas para indemnização na casa das centenas de milhões, em parte por prejudicarem os grandes lucros da energia e pressionarem no sentido de menores preços da eletricidade. Muitos processos judiciais sob o tratado permanecem em sigilo. Para outros, há pouca informação disponível.
Enquanto a década passada assistiu a uma grande oposição ao ISDS em outros acordos internacionais de comércio e investimento, o TCE conseguiu surpreendentemente evitar essa indignação pública. No entanto, activistas, investigadores e parlamentares começam a fazer perguntas críticas sobre o TCE. Há iniciativas de colaboração entre cidadãos, juristas, parlamentares, tribunais e governos que poderão pôr fim ao TCE. Mais países poderão seguir o exemplo da Rússia e da Itália, que já saíram do TCE.
A pressão sobre o TCE pode conduzir a alterações no TCE que atenuem os seus problemas. O Conselho da União Europeia anunciou a 15 de Julho de 2019 que autorizou a Comissão Europeia a entrar negociações em nome da UE para modernizar o Tratado da Carta da Energia à luz de “crescentes preocupações legais e políticas” sobre o TCE. O Conselho afirma que o TCE modernizado deveria “reafirmar explicitamente” o direito dos estados para tomar medidas legítimas de política pública, tais como protecção da saúde, segurança, meio ambiente ou ética pública, bem como protecção social ou do consumidor. Nesta modernização deve ainda ser esclarecido que as disposições de protecção do investimento não podem ser interpretadas como um compromisso das partes de não alterar suas leis. O acordo modernizado deve fornecer definições claras de “investimento” e “investidor” – excluindo explicitamente os investidores que carecem de “actividades comerciais substantivas” no país de origem, para esclarecer que “as empresas de fachada” não podem apresentar queixas sob o TCE.
No entanto, não é crível que o processo de modernização do TCE venha reduzir a ameaça que este tratado representa para o combate às alterações climáticas. Qualquer alteração ao tratado só pode ocorrer se existir unanimidade entre todos os participantes e o Japão já declarou que não aceitará alterações substanciais. Pior ainda, tanto para a Mongólia, como para o Turcomenistão e o Cazaquistão, as receitas provenientes da venda de combustíveis fósseis representam mais de 10% do seu PIB, e para o Azerbaijão elas representam mais de 20%. Assim sendo, é pouco provável que estes países apoiem qualquer medida no sentido de minorar o volume de emissões de CO2 ou equivalente, já que isso lhes traria prejuízos económicos no curto prazo.
Recentemente a Dr. Yamina Saheb publicou um relatório onde são apresentadas informações que revelam que o TCE é incompatível com a luta contra as alterações climáticas, pelo que o seu abandono é urgente. Yamina Saheb foi autora principal dos relatórios do IPCC por ser perita na área energética, trabalhou no secretariado do TCE e tem vindo a alertar a sociedade para os perigos que este tratado representa. O relatório revela que a estimativa do volume de emissões protegidas pelo tratado durante o período de 2018 até 2050 é de 148 Gigatoneladas de CO2 ou equivalente. Caso a União Europeia queira cumprir os objectivos do Acordo de Paris e evitar uma subida de temperatura de 2º C, o máximo que poderá emitir é 78 Gigatoneladas. Por outro lado, este relatório do IPCC demonstra que as consequências de subidas de temperatura superiores a 1,5º C serão absolutamente catastróficas para o planeta e para a Humanidade. No entanto, para ter 50% de probabilidade de evitar uma subida de 1,5º C, o volume total de emissões associado à União Europeia é de 30 Gigatoneladas. Por fim, mesmo que as propostas da União Europeia, no sentido de dar aos estados o direito a regular com o objectivo de combater as alterações climáticas, fossem aceites sem que o processo de negociação as chumbásse ou atenuásse, o relatório sobre os impactos do TCE estima que continuaria a estar sob protecção do TCE um volume de 98 Gigatoneladas. Um relatório mais detalhado da mesma autora volta a reforçar a mesma mensagem.
Importa acrescentar que, por outro lado, está a decorrer um processo de expansão do TCE. O Burundi, a Suazilândia, a Mauritânia, e o Paquistão estão na iminência de aderir ao tratado. O Bangladesh, o Chade, a China, Marrocos, a Nigéria, a Sérvia e o Uganda estão num patamar não muito distante, sendo que o Cambodja, a Colômbia, o Guatemala, a Nigéria, o Panamá e a Gâmbia já iniciaram o processo de adesão. Cada país que aderir a este tratado poderá aumentar o volume total de emissões protegidas e os custos de abandonar o tratado num momento posterior.
De particular relevância para Portugal é o caso da China, dada a dimensão do investimento chinês no sector energético do nosso país: se Portugal abandonar o TCE depois da entrada da China, isso poderá ter custos muito pesados para as finanças nacionais.