Toronto. Desde que ganhou a maioria em 2011, o governo de Harper tem vindo a desistir da soberania do Canadá, distribuindo-a como se fossem rebuçados.
A primeira desistência foi o tratado “Foreign Investment Promotion and Protection Agreement” com a China (FIPA), finalizado em 2014 e que estará em vigor durante décadas. Ao abrigo do FIPA, uma decisão do parlamento canadiano ou até do Supremo Tribunal que desagrade a investidores chineses pode ser posta em causa dentro do prazo de três anos, através de um processo contra o Canadá. Se o processo for julgado procedente, os contribuintes canadianos terão de compensar o investidor chinês pelas decisões canadianas – eventualmente pagando milhões de dólares. Assim, a Assembleia Nacional do Canadá ou o seu Supremo já não terão a última palavra sobre o orçamento do país e os últimos decisores já não serão os tribunais normais.
A segunda concessão – ainda não finalizada devido à oposição europeia – é o CETA (Comprehensive Economic and Trade Agreement), anunciado às pressas numa cerimónia fantoche em Otawa no verão passado. Contudo, ainda não foi assinado e menos ainda ratificado.
Muitos europeus se opõem à ameaça que o CETA representa em termos de transferência de poder das instituições europeias para as companhias estrangeiras e seus advogados privados. Acima de tudo, o CETA – antecipando-se a outro tratado entre os EUA e a UE (TTIP) – irá expandir um sistema de pseudo-tribunais favorável às grandes companhias que tem despertado alargada preocupação no Parlamento Europeu, Áustria, França, e Alemanha. Eufemisticamente, esses pseudo-tribunais são chamados “acordos sobre os conflitos entre os investidores e os estados” (ISDS).
A terceira concessão da soberania canadiana virá do Tratado Transpacífico (TPP) liderado pelos EUA e que inclui uma dúzia de países do anel do Pacífico. O Canadá juntou-se-lhes após a vitória de Brian Harper.
Tal como o FIPA e o CETA, o TPP irá transferir o poder de controlar os orçamentos públicos das instituições nacionais para esses pseudo-tribunais geridos por advogados privados (…).
O ponto mais alto da soberania canadiana ocorreu entre 1982 e 1994. Em 1982, a Constituição foi alterada. Pela primeira vez, uma decisão do Parlamento canadiano tornou-se suprema, sendo sujeita à constituição e interpretada pelos tribunais domésticos. O Canadá aperfeiçoou a sua independência formal.
Em 1994, o NAFTA entrou em vigor. Para os sectores da economia detidos por interesses americanos, as leis e tribunais canadianos ficaram sujeitas aos extremamente poderosos braços da lei internacional do ISDS. Assim, o Canadá permaneceu e permanece o único país desenvolvido do ocidente que concedeu a sua soberania aos EUA.
Mas o NAFTA limitava-se às companhias americanas a operar no Canadá. Com o FIPA, esses pseudo-tribunais foram extensíveis às companhias chinesas. Com o CETA e o TPP serão extendidos agora ás firmas japonesas e europeias. Tem havido uma grande oposição e debates alargados na Europa e nos EUA contra esses pseudo-tribunais por beneficiarem as corporações em detrimento do público. Mas porque não no Canadá ? E por que razão é o Canadá o lider mundial em desistir da sua soberania?
Nota: Gus van Harten é professor e especialista em direito do investimento na fac. de direito de Osgoode Hall Law School. É autor da obra “Sold Down the Yangtze: Canada ‘s Lopsided Investment Deal with China”.
Comentário:
Tentando responder à pertinente questão levantada pelo autor, podemos afirmar com segurança que a atitude do governo conservador de Harper se inscreve em absoluto na estratégia global das grandes corporações. Esta consiste em esmagar o poder soberano dos estados-nação e das suas instituições democráticas em favor de novas instâncias de poder não democráticas que se vão constituindo e legitimando num patamar e num novo paradigma superior a todas as outras instâncias de poder existentes. Os factos confirmam em absoluto que esse novo poder designado por “Império” na obra de Hardt e Negri se serve dos partidos, instituições e políticos como Harper para concretizar os seus objectivos.
Ignoramos a que ponto o povo canadiano terá consciência desta problemática, mas acreditamos que quando se aperceber, não hesitará em mobilizar-se para a defrontar.
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Janet Eaton/Gus van Harten, 29/06/2015
Tradução e comentário de José Oliveira