Como já referimos aqui, o interesse na agenda de comércio livre está em crescendo na União Europeia (UE). No rescaldo das eleições francesas, das condicionantes impostas pela invasão da Ucrânia e pela pandemia, a UE prepara-se para dar um novo impulso ao comércio internacional, voltando a estar na ordem do dia os acordos de comércio e investimento entre a UE e países como o México, o Chile e o bloco comercial do Mercosul.
Ventos de mudança na Europa
A França está à frente da Presidência do Conselho da UE durante o primeiro semestre de 2022 e com isso Macron garantiu que o tema do comércio internacional ganhava pouco espaço de discussão, evitando assim embates “perigosos” no seu país, nomeadamente com o sector agrícola, durante o sensível período eleitoral. Estando agora a terminar a presidência francesa do Conselho da UE e tendo Macron garantido um novo mandato à frente dos rumos da França, o comércio internacional volta a surgir com fôlego renovado, estando no topo das prioridades da República Checa e da Suécia, ambos países que defendem o comércio livre e que vão assumir a presidência do Conselho nos próximos dois semestres. A ministra sueca do comércio, Anna Hallberg, afirmou que a UE precisa de acordos bilaterais e regionais de comércio robustos e que é preciso avançar rapidamente para a conclusão daqueles que se encontram pendentes, entre os quais o UE-Mercosul.
Também no Parlamento Europeu voltam a ouvir-se vozes a favor da ratificação deste acordo. Jordi Cañas, eurodeputado espanhol do grupo parlamentar Renew Europe e relator da Comissão de Comércio Internacional, considera que a conjuntura actual, marcada pelo bloqueio comercial com a Rússia, pelas disrupções nas cadeias globais de abastecimento e pelos problemas de acesso aos mercados, faz dos países do Mercosul dos mais relevantes parceiros comerciais. Cañas já referiu por isso que o acordo vai inevitavelmente voltar a ganhar destaque e que espera que a ratificação aconteça durante as presidências checa e sueca.
Várias organizações ligadas ao comércio internacional também já se manifestaram em relação a isto e demonstraram o seu agrado em que estes voltem a ser uma prioridade da União. Tanto a invasão da Ucrânia como a pandemia são utilizadas como argumentos para justificar a necessidade de ratificar os acordos de comércio pendentes, uma vez que urge diversificar as fontes de fornecimento de matérias-primas essenciais. As empresas mostram preferir apostar na diversificação de fornecedores e/ou em fazer reservas de stock do que investir em relocalização (reshoring), ou seja, em transferirem as suas operações comerciais para o país em que se encontram sediadas. Joachim Lang, director executivo da Confederação da Indústria Alemã (BDI), afirmou mesmo que “no âmbito da sua presidência do G7, o governo federal [da Alemanha] tem que dar um sinal firme no sentido da abertura de mercados e do multilaterialismo. A Alemanha deve empenhar-se na assinatura de acordos de comércio livre, por exemplo com o bloco Mercosul ou com a Austrália,…”.
Além disto, a divisão do acordo de associação tem vindo a tornar-se cada vez mais uma possibilidade. Havendo uma separação oficial dos acordos de comércio e de cooperação política e passando cada um a constituir um acordo por si só, o acordo de comércio apenas terá que ser ratificado pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho, uma vez que a política comercial é uma competência exclusiva da UE. Assim, a ratificação do acordo seria, à partida, mais rápida e menos contenciosa evitar a ratificação a nível nacional, por cada um dos parlamentos dos Estados-Membros.
Este renovado interesse em finalizar o acordo já é perceptível do outro lado do Atlântico, tendo o actual ministro da economia brasileiro Paulo Guedes referido que as conversações entre os blocos têm ocorrido de forma mais fluída e concreta, havendo menor resistência da parte de países como a França e a Bélgica – países que tradicionalmente mostravam menos abertura à celebração do acordo UE-Mercosul. Segundo Guedes, vários países “têm vindo a perceber que o Brasil é uma peça-chave no que concerne à segurança alimentar e energética globais”, especialmente devido à sua localização estratégica e à neutralidade internacional por que se pauta.
A adenda ao acordo e os entraves ainda presentes
O Comissário Europeu para o Ambiente, Virginijus Sinkevičius, esteve recentemente em visita ao bloco sul-americano e afirmou nessa ocasião que a UE está pronta para aprofundar a aliança estratégica com o Mercosul e que espera que a adenda ou “carta suplementar” ao acordo de comércio seja finalizada ainda este ano. A adenda visa colmatar as lacunas identificadas no acordo que o bloquearam até aqui, nomeadamente a nível de salvaguardas ambientais que previnam a destruição da floresta Amazónica. A aprovação final do acordo depende da aprovação desta adenda pelo que o acordo, para todos os efeitos, poderá estar finalizado antes do final deste ano, apesar das graves consequências socioambientais daí esperadas.
É de salientar que a mudança de posicionamento que se verifica a nível europeu não é correspondida em termos de alterações aos aspectos que impediram a finalização do acordo até aqui, continuando muitos destes a estar presentes. Ao longo dos últimos três anos, continuou a haver um aumento anual da desflorestação em território brasileiro, sendo esperado este ano um novo aumento, de acordo com os dados já disponíveis. Além disto, o actual governo brasileiro continua a procurar vias legais e políticas que garantam a possibilidade de exploração de mais áreas e recursos naturais do país, ainda que isso constitua um grave ataque às comunidades locais e uma deturpação dos compromissos ambientais assumidos. Um exemplo disto é a proposta de lei 191/20, de fevereiro de 2020, que visa permitir a abertura de territórios indígenas à exploração mineira e à instalação de centrais hidroeléctricas. Também a proposta de lei 337/2022, que foi apresentada na Câmara dos Deputados do Congresso em Fevereiro deste ano, constitui outro exemplo claro desta abordagem. Esta proposta requer que o estado de Mato Grosso deixe de ser oficialmente reconhecido como parte da área da Amazónia legal, permitindo assim que se deixem de aplicar a este estado as leis de protecção e conservação ambiental desenvolvidas especificamente para a preservação deste bioma.
Perante estas evidências, Sinkevičius declarou que a aprovação destas propostas de lei poderá afectar a finalização do acordo UE-Mercosul (algo que foi também referido pelo Vice-Presidente e Comissário europeu para o Comércio, Valdis Dombrovskis, quando questionado sobre o mesmo tópico), bem como a candidatura do Brasil à OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, que está actualmente em progresso. Sinkevičius deixou também claro que o Brasil é um parceiro importante no que concerne aos objectivos do Pacto Ecológico Europeu e que nesse sentido terá que honrar os seus compromissos de combate à desflorestação e à mineração ilegal.
O reforço destes princípios e a preocupação expressada em relação às propostas de lei somam-se à resistência política ao actual presidente brasileiro Jair Bolsonaro e aos apoiantes da sua linha de governação, considerada ecocida e genocida devido à destruição em larga escala a que tem condenado os ecossistemas brasileiros e a população indígena. Contudo, em Outubro o Brasil vai às urnas e, caso Bolsonaro não seja re-eleito, isso poderá ser o último acerto político necessário para que o acordo de comércio seja finalizado.
Até há poucos meses atrás, o acordo de livre comércio entre a UE e o Mercosul parecia ter poucas hipóteses de sucesso, mas a actual conjuntura económica e geopolítica voltou a fazê-lo sair da gaveta. A expectativa de momento, tanto de empresas e organizações empresariais, como de vários quadrantes políticos europeus, é que se abram novos mercados e se aposte na expansão das oportunidades comerciais extra-UE, particularmente com países agora considerados relevantes, como os do bloco sul-americano. É notória a falta de atenção que é dada a soluções baseadas em decrescimento ou desglobalização, com ênfase em políticas que possam tornar cada região, em grande parte, auto-suficiente em relação às suas necessidades básicas, relegando também assim para segundo plano mudanças urgentes às práticas instaladas de forma a garantir o respeito pelos direitos sociais e ambientais. Tanto a pandemia como a guerra na Ucrânia vieram provar que dependermos em larga escala de outrem, bem como de mercados mundiais voláteis, implica um enorme risco em termos de conseguirmos suprir as nossas necessidades, especialmente em “alturas de aperto”. Isto é algo que a UE, se pretende de facto maior autonomia estratégica, deveria reconhecer.






