Nos próximos dias 15/16, a OMC reunirá em Nairobi para prosseguir a sua política de liberalização do comércio mundial em desfavor dos países em vias de desenvolvimento. A Plataforma contra o Tratado Transatlântico subscreve esta Carta dirigida aos membros da OMC, e assinada até agora por 389 organizações, por um tratamento diferenciado e uma transformação das políticas agrícolas, favoráveis aos mais pobres
Na qualidade de membros das 345 organizações da sociedade civil de mais de 100 países do Norte e do Sul, grupos de consumidores, ambientalistas, sindicatos, agricultores e outros activistas do desenvolvimento, escrevemos esta carta preocupados com a direcção errada para onde apontam as actuais negociações da OMC, e apelamos a uma reviravolta urgente nas negociações ministeriais a ocorrer em Dezembro em Nairobi. A política comercial global tem de ser avaliada no sentido de saber se contribui para objectivos globais importantes como sejam a segurança e soberania alimentar, o desenvolvimento sustentável, a conservação ambiental, a estabilidade financeira, o crescente acesso a serviços de qualidade, a criação de bons empregos e a redução da pobreza e da desigualdade. Após 20 anos de experiência com a OMC e a sua globalização fundada no modelo corporativo, é bem claro que este modelo particular de comércio actua contra os agricultores, os trabalhadores, os pobres e o ambiente, ao mesmo tempo que facilita o excessivo enriquecimento de alguns poucos. Uma vez que o seu mandato é aumentar a liberalização e o comércio, em vez de assegurar que o comércio seja o motor do desenvolvimento e dos objectivos estatuídos acima, a OMC é a instituição errada para governar o sistema global de comércio.
Infelizmente, alguns dos seus membros procuram expandir este modelo falhado, portanto é urgente reverter este caminho. A transformação do sistema de comércio pelo aperfeiçoamento das suas regras tem de constituir uma prioridade.
É bem conhecido que a maioria dos países em desenvolvimento compreenderam que as condições do Uruguay Round criaram um conjunto de regras na OMC, deixando-os em desvantagem no sistema global de comércio. Desde essa altura, têm circulado propostas tendentes a melhorar as partes piores dessas regras através do que ficou conhecido como a “Implementation Agenda”. Os países em desenvolvimento não queriam uma nova ronda de acesso aos mercados, posição que concorre com a sociedade civil. Quando os países em desenvolvimento concordaram em lançar uma nova ronda em 2001, foi com a promessa específica – e mandato – de que essa ronda se focasse nas questões de desenvolvimento que incluíam a correcção dos problemas existentes e desequilíbrios na OMC, com atenção particular na melhoria das regras extremamente desequilibradas do dossier agrícola. Infelizmente, desde essa altura, alguns países desenvolvidos insistiram uma e outra vez em relegar para os bastidores a agenda do desenvolvimento, enquanto pressionavam a questão do acesso aos mercados como prioridade absoluta das negociações. Assim, cerca de 14 anos depois da Ronda de Doha, as questões do desenvolvimento que os membros concordaram em priorizar, permanecem sem resolução no seio da OMC. Nesta altura, o desequilíbrio nas negociações não pode permanecer no ponto em que está.
Agenda errada: mais liberalização de serviços e mercadorias e novas exigências corporativas.
É preciso parar imediatamente com as negociações que visam liberalizar os serviços através da expansão do General Agreement on Trade in Services (GATS). O escrutínio público reforçado sobre os serviços privados e públicos é crucial para a democracia, para o interesse público e para o desenvolvimento, assim como para o funcionamento estruturado do mercado dos serviços. A desregulação do sector financeiro encorajada desde os anos 90 e das regras do GATS levou à recente crise financeira global e à consequente vaga de recessões. Adicionalmente, opomo-nos particularmente à inclusão de quaisquer serviços públicos como saúde, seguros, água, energia, correios, educação, transportes públicos, saneamento e outros que têm de funcionar em termos de acessibilidade e qualidade, a bem do interesse público. Antes de quaisquer negociações sobre serviços, tem de ser efectuada uma adequada avaliação das potenciais implicações sobre os consumidores, os trabalhadores, e sobre o interesse público em geral, particularmente no que toca ao desenvolvimento dos serviços em países em vias de desenvolvimento. Por estas razões já avançadas na carta de 16/Set./2013 escrita por 345 organizações da sociedade civil, nós opomo-nos ao Trade in Services Agreement (TISA), e também à potencial expansão do GATS no âmbito da OMC.
Pelas mesmas razões, opomo-nos igualmente à continuação das negociações tendentes a liberalizar ainda mais o comércio através do Non-Agricultural Market Access (NAMA).
Nas negociações, são particularmente visados sectores de particular interesse para as corporações dos países desenvolvidos, em vez de se focarem nas oportunidades de exportação dos países em desenvolvimento. Isto vai destruir as oportunidades de crescimento e de desenvolvimento industrial, particularmente nestes países.
A transformação requerida em muitos países africanos e outros menos desenvolvidos para a criação de empregos e alívio da pobreza – aspectos cruciais das propostas para o Desenvolvimento Sustentado – exige a protecção das indústrias nascentes, promoção das exportações de produtos de maior valor acrescentado, transferências de tecnologia e outras ferramentas já usadas por todos os países desenvolvidos no seu caminho para o desenvolvimento. Além disso, a crise global do emprego, em que dezenas de milhões de pessoas não têm trabalho, não pode ser resolvida com mais liberalização comercial.
Quaisquer futuras negociações comerciais – incluindo as do NAMA, mas também as multilaterais que incluem a expansão do Information Tecnology Agreement (ITA-II) e as do Environment Goods – têm de centrar-se na criação de emprego e na agenda Decent Work, desenvolvida pela Organização Internacional do Trabalho (OIT- WTO), em conjugação com o movimento global dos trabalhadores, em vez da estreita agenda que visa reduzir os impostos pagos pelas grandes corporações.
A própria ITA e a sua expansão, através do objectivo de eliminar as tarifas (zero tarifs) para os produtos industriais entra em contradição com a natureza das políticas que visam usar as tarifas como ferramentas para o avanço do desenvolvimento industrial e transformações estruturais nas economias mais pobres. Quaisquer discussões sobre o acesso aos mercados dos produtos não agrícolas deve centrar-se no processo de desenvolvimento industrial, incluindo a revisão da melhoria da flexibilidade disponível para países em desenvolvimento e através do cumprimento do princípio do Direito ao Tratamento Especial Diferenciado, tal como estipulado no Agreement on Trade-Related Investment Measures (TRIMs) que permitiriam aos países em desenvolvimento utilizar as alavancas políticas para o desenvolvimento industrial.
Também alertamos os membros que nos opomos firmemente à inclusão destes pontos numa OMC bastante viciada que ainda terá de lidar com os erros essenciais das regras que já existem. Também compreendemos existir o desejo pernicioso por parte de alguns países desenvolvidos membros da OMC, no sentido de pôr de lado permanentemente o mandato da Ronda de Doha para o desenvolvimento, substituindo-o por outra agenda focada nos interesses pelo lucro das suas maiores corporações. Estas questões foram liminarmente rejeitadas no passado pelos países em desenvolvimento e incluem investimento, contratos públicos e transparência (são os chamados items de Singapura); também incluem negociações sobre comércio electrónico (que irá expandir a dominação corporativa da gestão da NET e atacar a privacidade digital junto com outros direitos…); idem, as indústrias controladas pelo estado , as negociações sobre produtos e serviços ambientais (a referência “ambiental” apenas serve para dar uma conotação positiva à liberalização em curso).
Enquanto nos opomos a muitos destes aspectos inclusos na Ronda de Doha, a impossibilidade de preencher os objectivos do desenvolvimento e a substituição desse mandato por outro que se foca apenas nos objectivos errados tornam-se no oposto da agenda que tem de ser priorizada sobre o comércio mundial.
Como já discutimos antes, o desenvolvimento tem de se sobrepor aos outros assuntos na agenda da Trade Facilitation. Também entendemos que os membros da OMC estão a ser pressionados para ratificar o Protocolo da Implementação que permite ao Trade Facilitation Agreement (TFA) entrar em vigor. Reiteramos a nossa total oposição ao TFA como está especificado na nossa carta de 6/Junho/2013, particularmente porque o TFA traz implicações significativas relativamente a cada uma das frentes regulatórias (a institucional e a legislativa) e acarreta custos a curto e a longo prazo. Além disso, irá aumentar as importações em alguns sectores e contribuir para impedir as capacidades comerciais e produtivas dos países menos desenvolvidos.
Por estes motivos pedimos a estes países que adiem a ratificação e apenas preencham os requisitos mínimos (categoria A).
A agenda certa: transformação agrícola e Tratamento Especial Diferenciado
Os países em desenvolvimento e os menos desenvolvidos avançaram com propostas concretas sobre o mandato do desenvolvimento, incluído problemas de implementação, fortalecimento e operacionalização do Special and Differential Treatment (SDT), a reforma agrária e os outros temas sobre o mesmo conjunto de países. São precisamente estes temas que têm de ser priorizados na agenda, em vez de se discutir o acesso aos mercados por parte das corporações dos países desenvolvidos.
Ao lado da agenda SDT, os membros devem abrir urgentemente negociações para alterar as actuais regras sobre comércio agrícola e em particular, debruçar-se sobre os subsídios que distorcem o comércio, assunto que os países desenvolvidos há anos prometeram eliminar. É ultrajante que os países desenvolvidos subsidiem extensamente as suas exportações e muitas actividades internas, mas tal não seja permitido aos outros países. É fundamental acabar com os subsídios aos produtos agrícolas. No seio da OMC, não se pode permitir a alguns países prejudicar os mercados dos outros. Em futuras negociações sobre acesso aos mercados agrícolas, os países em desenvolvimento devem poder proteger as suas produções domésticas. Têm de ter acesso total a uma alargada gama de Produtos Especiais e a efectivos mecanismos de salvaguarda, na eventualidade de surgirem prejuízos devido às importações.
Paralelemente, apelamos aos membros para que concordem em soluções permanentes quanto a segurança alimentar, permitindo o acesso a programas públicos por parte de agricultores pobres no âmbito da “Green Box”. Os membros da OMC têm de ultrapassar o vergonhoso bloqueio por parte dos EUA sobre a proposta que permite aos países em desenvolvimento o acesso a programas de apoio a agricultores pobres, assegurando simultaneamente às suas populações com fome o direito à alimentação, removendo os obstáculos que a OMC coloca.
Em conclusão, quaisquer futuras negociações têm de centrar-se nas urgentes necessidades de desenvolvimento dos países e nas regras que o facilitem, incluindo a transformação das existentes no dossier agrícola (incluindo solução permanente para a segurança alimentar), priorização do Tratamento Especial Diferenciado, implementação de propostas para os países menos desenvolvidos, ignorar a agenda de acesso aos mercados do GATS e NAM, juntamente com outras agendas corporativas. Muitas das alterações exigidas fazem parte da declaração “Turnaround” da rede Our World Is Not for Sale. A Ronda ministerial em África não terá sucesso se avançar com políticas não do interesse dos africanos ou dos países menos desenvolvidos. Para Nairobi ter sucesso tem de tratar do desenvolvimento e inverter a tendência da OMC.
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“Our world is not for sale”; Stop Corporate Globalization, 8/Julho/2015
Dirigida aos membros da OMC (WTO)
www.ourworldisnotforsale.org/en/signon/letter-civil-society-regarding-future-agenda-wto-negociation
Tradução de José Oliveira