Friends of the Earth, Europe, 4/12/2014
(Agradece-se a assistência do Min .Neg. Estrangeiros do governo holandês e de várias fundações privadas)
Emma Jayne Geragthy e Natacha Cingotti
Tradução e adaptação de José Oliveira
Imagens : Friends of the Earth
O ISDS não é nada de novo, mas as recentes negociações do TTIP e do CETA originaram uma onda crescente de críticas públicas ao mecanismo que fornece aos investidores estrangeiros (os domésticos ou outros sectores da sociedade não o podem usar) a possibilidade de contornar os sistemas de justiça domésticos e exigir compensações financeiras aos governos através de tribunais arbitrais secretos. Isto, desde que considerem que os potenciais de investimento e lucro sejam afectados pela introdução de medidas regulatórias ou mudanças políticas por parte do estado anfitrião. Estes tribunais privados são compostos por três árbitros pagos à hora ($ 600 a $800) que decidem no segredo dos gabinetes, geralmente em conflito de interesses, pois estão muito interessados na manutenção do sistema, trabalhando muitas vezes para as mesmas companhias que levantam os processos. Os pedidos de indemnização podem atingir biliões. Contudo, os casos ISDS tal como as compensações muitas vezes não são tornados públicos, mesmo se envolverem os interesses das populações, como problemas ambientais, por exemplo.
Friends of the Earth compilou informação sobre casos ISDS contra os Estados Membros (EM) desde 1994 e sobre os quais existe documentação pública. Considerando a grosseira falta de transparência sobre o ISDS, esta pesquisa apenas proporciona uma visão parcial sobre a escala do problema. Contudo ilustra bem o irrefutável ataque contra os EM e contra o ambiente, bem como os elevados custos que o processo acarreta para os contribuintes e para a própria democracia.
Desde 1994 que se saiba, já houve 127 processos ISDS contra 20 EM. Desses apenas há dados sobre indemnizações referentes a 62 deles (48%). O Total exigido ronda os 30 biliões. O montante pago a investidores estrangeiros, incluindo ordenados dos árbitros, custas judiciais (…) só é conhecido em 14 dos 127 casos (11%) e atinge 3,5 biliões. A mais alta indemnização decidida por um tribunal contra um EM atingiu 553 milhões no processo Ceskolovenka Obchodni Banka contra a República Eslovakia. 76% dos casos conhecidos (97 dos 127) foram contra membros mais recentes que entraram na EU entre 2004 e 2007. 26 casos ISDS foram contra a República Checa (20%) do total, sendo este o país europeu com mais processos. Cerca de 60 % dos casos respeitam a sectores relevantes da área ambiental. O nº total de casos cujo desfecho é conhecido (63 dos 127) envolve 15 a favor dos investidores e 13 terminando em acordo. Embora estes acordos possam ter uma conotação positiva, porque as partes chegam a entendimento (…), podem ser também muito caros para o contribuinte. Por exemplo, o acordo mais caro conhecido pago por um EM, respeita à empresa Eureko que processou a Polónia, ganhando 2 biliões.
O ISDS tem estado sob escrutínio público devido à sua inclusão nas negociações do CETA e do TTIP. Um dos argumentos da C. Europeia para a sua inclusão é o facto de que alguns estados já assinaram muitos acordos bilaterais contendo ISDS. O mecanismo tem estado presente em acordos com EM desde 1960, chegando a um total de 1400. Assim a C. Europeia entende que o ISDS deve fazer parte dos acordos em negociação. Mas este organismo nunca menciona a frequência com que o ISDS tem sido usado contra os estados e quanto tem custado aos contribuintes. As negociações em curso de tratados de comércio e investimento entre a EU, os EUA e a China não têm precedentes nem em dimensão nem em ambição e expandir-se-á dramaticamente o alcance dos investimentos cobertos pelo ISDS. Tal expansão arrisca-se a minar seriamente a capacidade de os governos regularem a protecção do ambiente e das pessoas.
Quando um estado perde um caso ISDS ou chega a acordo, os governos são forçados a entrar com dinheiro público. Por outras palavras, o ISDS permite efectivamente aos investidores estrangeiros passarem os riscos das suas empresas para a sociedade, ou seja, para os contribuintes. Mesmo nos casos que ficaram a meio ou onde o resultado foi a favor dos estados, o tribunal pode decretar a partilha de custos entre as duas partes, resultando em custas judiciais exorbitantes. De acordo com estimativas da OCDE, as despesas médias de um caso ISDS podem chegar a 8 milhões só para custas.
Os proponentes destas cláusulas perigosas argumentam que o mecanismo já existe relativamente a mais de 3000 tratados pelo mundo fora e fornecem uma adequada protecção aos investidores privados. Contudo raramente referem os custos desta litigância que cai sobre os contribuintes e sobre a sociedade. Também se recusam assumir que a única razão pela qual os EM (sobretudo no ocidente) não têm sido mais atacados por processos ISDS é porque não o aceitaram nos acordos sobre movimentos de capitais com os EUA, Canadá e China, países com os quais a EU está agora a negociar. Sob este ponto de vista, as negociações da EU com esses países vão de certeza mudar bastante o estado das coisas.
Consideramos insuficientes as reformas propostas pela EU, uma vez que não tratam das questões fundamentais: o sistema é discriminatório, anti-democrático, parcial a favor dos investidores e desnecessário. Nós argumentamos que a inclusão de cláusulas perigosas no CETA e no TTIP contribui para expandir o poder dos árbitros até níveis sem precedentes. Isto destrói a capacidade das autoridades nacionais para gerir os interesses públicos e constitui um ataque à democracia inaceitável e desnecessário(…).
Sempre que possível, usamos dados do International Centre for Settlement Investment Dispute (ICSID), da Comissão da ONU sobre International Trade Law (UNCITRAL) e da UNCTAD ( United Nations Conference on Trade and Devolpment).
Outras informações vieram de Websites como: International Court of Arbitration (ICC), The Stockholm Chamber of Commerce (SCC), do Permanent Court of Arbitration (PCA), do Energy Charter Treaty website, Investment Treaty Arbitration Website, bem como de firmas de advogados relevantes. Outras fontes foram as jornalísticas como a IA Reporter (…).
Tem havido um evidente aumento do nº de casos que os mesmos investidores colocam através do ISDS. 7 investidores já iniciaram pelo menos 2 casos cada, e 2 já iniciaram pelo menos 3. Esta tendência coincide com o rápido aumento do total de casos iniciados nos últimos anos (…).
Case Study: Vattenfall vs Alemanha, 2009-2011
Em 2009, a companhia sueca Vattenfall iniciou uma litigância contra a Alemanha sobre a construção de uma central a carvão no rio Elba, Um contrato provisório foi passado pela cidade de Hamburgo em 2007, estabelecendo um certo número de limitações ambientais, num esforço para proteger as águas do rio. Mas outras restrições ambientais foram acrescentadas ao contrato em concordância com as directivas europeias sobre efluentes, antes de o contrato final ser aprovado em 2008. A Vattenfall alegou que tais exigências tornaram o projecto inviável e reclamou 1,4 biliões em danos, além de outros custos e taxas ao abrigo do Energy Charter Treaty. O caso foi resolvido em 2011, tendo a cidade de Hamburgo concordado em modificar as exigências sobre os efluentes. O resultado foi a redução dos padrões ambientais comparativamente às normas originais que a litigância esmagou.
Dados gerais: 75 dos 127 casos respeitam ao ambiente: petróleo, gás, carvão, centrais nucleares, produção e distribuição de energia, mineração, alimentação, energias renováveis, florestas, agricultura, construção civil e gestão de resíduos. 77 dos 127 casos foram contra 6 estados: R. Checa, Polónia, Hungria, R. Eslovakia e Roménia. Em 13 das 14 decisões conhecidas foram pagos 3,5 biliões.
Case Study: a R. Checa sofreu 26 queixas até 2014 sobre alimentação, metalomecânica, pescas, florestas, transportes, propriedades, resíduos, banca e energia. O país já pagou mais de 460 milhões a investidores estrangeiros.
Descrição de um caso: nos anos 90, a companhia Ronald Lauder fez investimentos na TV Nova, uma emissora privada checa, através de uma companhia alemã, mais tarde substituída pela holandesa CEM. Ambas iniciaram uma litigância contra a R. Checa, exigindo compensação pela interferência do Conselho Checo dos Media que originou quebras nos lucros. Os casos Lauder e CEM correram em paralelo, mas, apesar de lidarem com os mesmos factos, os tribunais decidiram sentenças opostas. O caso Lauder foi arquivado por se considerar que não constituía uma violação dos tratados, enquanto o outro foi decidido a favor da CEM que recebeu um total de quase 200 milhões. Ambos são eloquentes quanto à imprevisibilidade e às irregularidades do sistema de arbitragem. Apesar da falta de consistência na construção das decisões, as consequências são irreversíveis para os estados processados e traduzem-se em centenas de milhões pagos pelos cofres públicos.
Case Study: Eureko (holanda) vs Polónia.
A disputa centrou-se na privatização da antiga seguradora estatal PZU e resultou na maior indemnização paga por um EM. O governo polaco anunciou a venda de 30% das acções da PZU (…). A Eureko e o Big Bank Gdanski foram escolhidos. A Eureko planeou aumentar a sua participação da oferta pública de venda dos 30 para 51% com o objectivo de assegurar o controle maioritário. A queixa argumentava que o país recuara nos seus compromissos e que esta quebra no contrato custou à companhia a possibilidade de adquirir a posição maioritária. O governo alegou que as queixas da Eureko foram devidas a disputas contratuais sobre o acordo de aquisição de acções, sendo por isso inadmissíveis. O tribunal ignorou a inadmissibilidade avançada pelo governo, concluindo que as acções e inacções do executivo resultaram numa quebra das obrigações polacas no âmbito do tratado bilateral Holanda-Polónia. O caso foi resolvido e anunciado numa conferência de imprensa, tendo a Eureko recebido quase 2,2 biliões (o equivalente a 230.000 vezes o salário mensal de uma enfermeira).
Este caso de altíssima indemnização ilustra bem os elevados custos que tais processos podem atingir. Quando a Polónia decidiu reverter a privatização (…) no interesse público, o ISDS permitiu ao investidor usar privilégios especiais para reclamar biliões. Isto também levanta sérias apreensões sobre outros 12 casos cujo desfecho permanece desconhecido.
Case Study: laboratórios Servier, SAA, Biofarma SAS (França) vs Polónia.
Em 2010, o gigante farmacêutico francês Servier iniciou um litigância ISDS contra a Polónia, baseando-se num tratado bilateral e exigindo 300 milhões.
A Polónia havia lançado um certo número de reformas administrativas em linha com os regulamentos farmacêuticos europeus de 1991, estabelecidos entre o país e a EU, no seguimento da adopção da Lei Framacêutica de 2001 e anterior à sua adesão à EU em 2004. Em consequência, muitos produtos fabricados pela empresa queixosa viram a sua licença cancelada. Ambas as partes discordaram sobre qual seria o quadro legal aplicável (…). O tribunal decidiu que a Polónia, embora não tenha actuado de má fé, provocou prejuízos que ultrapassam em muito os padrões do tratado. Assim, seria de aplicar simplesmente as regras de compensação relativas a qualquer investimento no âmbito do tratado bilateral. A Polónia foi obrigada a pagar 4 milhões de indemnização.
Case Study. Achmea (ex-Eureko, Holanda) vs R. Eslovakia.
Em 2008, a Achmea iniciou uma litigância contra a R. Eslovakia no âmbito do tratado bilateral, alegando a violação do mesmo, datado de 1992 que encorajava a protecção recíproca de investimentos. A Achmea havia fundado a União de Saúde Pública nesse país. Após uma mudança de governo em 2006, foram introduzidas muitas reformas tendentes a reverter a liberalização de 2004 no mercado dos seguros de saúde (…). Os reclamantes alegaram que tais alterações destruíram o valor do seu investimento, constituindo expropriação ilegal do que haviam investido na União de Saúde Pública. A Achmea exigiu 100 milhões por danos. Uma das questões-chave relaciona-se com a jurisdição dos tribunais sobre se os tratados da EU têm prevalência sobre acordos bilaterais, tornando-os inaplicáveis. A R. Eslovakia opôs-se à jurisdição dos tribunais arbitrais, baseada na interacção entre o acordo bilateral e as leis da EU. O tribunal decidiu que o acordo bilateral não havia findado pelo facto de o país aderir à EU, e intimou-o a pagar 25 milhões ao queixoso.
Case Study: irmãos Micula (Suécia) vs Roménia.
Os irmãos Micula fizeram investimentos no norte da Roménia, montando várias fábricas de comida processada, moagem e manufactura. Em 2005, os queixosos iniciaram um processo contra o governo reclamando 450 milhões. O caso surgiu na sequência de uma série de reformas onde o governo retirou vários incentivos e isenções de taxas antes oferecidas aos irmãos Micula para atrair investimento àquela região deprimida do país. A Roménia argumentava que essas alterações eram exigidas pelo programa de adesão à EU de 2007. Em 2013, o tribunal decidiu que o país violara o acordo bilateral e o brigou ao pagamento de 250 milhões.
Este caso rodeou-se de grande expectativa particularmente a respeito da real soberania da EU. A C. Europeia interveio e tentou convencer o tribunal de que as acções do governo se destinavam a alinhar com as normas europeias que exigem o fim de ajudas estatais a empresas privadas. A Comissão ainda argumentou que se o país fosse obrigado a pagar, isso constituiria também ajuda estatal ilegal sob outra forma. O tribunal não aceitou e decidiu que o país estava obrigado às normas do ISDS em vigor. A Roménia viu-se assim numa situação de conflito entre as regras da EU e o acordo bilateral. A C. Europeia decidiu suspender o país em 2014 alegando que aquele procedimento constituía ajuda ilegal a empresas. (O tribunal ISDS propôs um acordo-chantagem à Roménia que o país recusou). Agora o país pode ser processado até pelos EUA onde a recusa em pagar pode dar origem a confisco de bens. No fim, o tribunal estabeleceu que “os investimentos incluem expectativas de lucro e que tais expectativas serão necessariamente menores se o investidor se vê privado dos seus incentivos”.
Os países que mais recentemente aderiram à EU têm sido os alvos preferenciais dos investidores estrangeiros por implementarem políticas regulatórias em linha com os padrões europeus (…).
Conclusões: este estudo apenas mostra a ponta do iceberg dos casos ISDS constituídos contra EM. Contrariamente aos argumentos da EU, mostra-se claramente os inaceitáveis custos a que os contribuintes são obrigados, face aos privilégios concedidos aos investidores estrangeiros (…). Em Março de 2014, em resposta às crescentes críticas sobre o ISDS, a C. Europeia lançou uma consulta pública sobre o ISDS no TTIP (…). Responderam cerca de 150.000 pessoas e 133.000 recusaram o ISDS. Em Setembro de 2014, apesar daquele escrutínio sem precedentes, o C. Europeu concluiu o CETA, incluindo a concessão de privilégios especiais a investidores estrangeiros. Esse acordo foi concluído antes de publicados os resultados da consulta. As autoridades europeias têm tentado ocultar repetidamente que a inclusão do ISDS no CETA e no TTIP irá fazer disparar dramaticamente as litigâncias por parte dos investidores (…). O panorama mudará substancialmente se os acordos com o Canadá e os EUA entrarem em vigor (…). Tal irá expandir inexoravelmente a capacidade de as corporações processarem os estados e aumentará o poder dos árbitros a uma escala sem precedentes. Porá em causa a capacidade de os governos regularem o interesse público dos cidadãos, os mesmos que irão pagar os riscos tomados pelos investidores privados.
Friends of the Earth acredita que nenhum tratado que inclua ISDS será aceitável. Apelamos aos parlamentos que rejeitem a ratificação do CETA e à C. Europeia que pare as negociações do TTIP.