Nos últimos meses, a Comissão Europeia e vários países têm feito repetidas declarações e intensas diligências para a ratificação do acordo UE-Mercosul. Entre essas diligências contra a elaboração de um “Instrumento Conjunto” que supostamente iria salvaguardar o meio ambiente, o clima e os direitos humanos, no âmbito do acordo. Este documento foi elaborado no maior secretismo e foi ontem divulgado através de uma fuga de informação. Em reacção, várias organizações da rede que a TROCA integra publicaram o seguinte comunicado de imprensa, em que denunciam o Instrumento Conjunto como “lavagem verde”, perspectiva que a TROCA subscreve.
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ÚLTIMA HORA: SOCIEDADE CIVIL DENUNCIA O INSTRUMENTO CONJUNTO SOBRE O ACORDO UE-MERCOSUL COMO “LAVAGEM VERDE”
Bruxelas, 22 de Março de 2023 – Documentos divulgados [1] por uma fonte confidencial revelam que o anexo proposto para o acordo UE-Mercosul, supostamente destinado a salvaguardar o meio ambiente, o clima e os direitos humanos, não contém nada para alcançar esses objectivos. O anexo expõe uma lacuna perigosa entre os objectivos climáticos e os compromissos de protecção dos direitos humanos da União Europeia (UE) e aquilo que a mesma UE realmente aprova à porta fechada.
Audrey Changoe, da Friends of the Earth Europe, declarou:
“Em vez de propôr mudanças genuínas como a Comissão Europeia alega, o instrumento conjunto proposto apenas contém ajustes cosméticos, aspiracionais e inexequíveis. Não há nenhuma nova medida incluída que trate de questões de desflorestação, alterações climáticas, violações dos direitos humanos, ou bem-estar animal. O acordo UE-Mercosul ainda empurra activamente a América do Sul para um colapso ecológico, apoia um sistema económico neo-colonial destrutivo e conduz a desigualdades sociais”.
Na secção sobre alterações climáticas, o instrumento afirma que os governos dos países devem manter as suas “Contribuições Determinadas a Nível Nacional” que foram estabelecidas em Junho de 2019. Mas ao mesmo tempo, o acordo propõe aumentar as actividades que impulsionam o aumento das emissões de gases com efeito de estufa no Brasil: a agricultura é um dos principais motores da desflorestação e das emissões de gases com efeito de estufa no país. [2][3][4] No entanto, o instrumento conjunto não inclui quaisquer medidas que ajudem a resolver este problema.
Relativamente às florestas, o anexo diz que “a UE e o Mercosul estabelecerão uma meta intermédia de redução da desflorestação de pelo menos 50% dos níveis actuais até 2025.’ No entanto, as importações da UE da região do Mercosul de produtos como a soja e as aves de capoeira que provocam a desflorestação estão a aumentar [5], e o acordo irá aumentar ainda mais estas exportações [6][7].
O instrumento também pretende incluir a sociedade civil e as comunidades indígenas como intervenientes-chave nas negociações do acordo e valorizar a participação democrática. Mas os povos indígenas, os pequenos agricultores e a sociedade civil foram marginalizados desde o início das negociações e nunca fizeram parte de qualquer processo de tomada de decisão. Na realidade, o acordo enfraquece a protecção dos direitos indígenas [8], e o próprio anexo foi negociado em segredo e só foi divulgado através de uma fuga de informação. Opostamente, os lobistas empresariais da poluente indústria automóvel e do grande agronegócio, com um historial de violações dos direitos humanos e de recuos ambientais, tiveram um lugar à mesa de negociações por parte da UE [9].
Morgan Ody, agricultor em França e Coordenador Geral do maior movimento camponês mundial de agricultores A Via Campesina afirmou:
“Este Acordo de Livre Comércio baseia-se num paradigma obsoleto que ignora os direitos humanos, as crises climáticas e de biodiversidade, a soberania alimentar e os direitos dos produtores de alimentos a um rendimento justo. Não há forma de um tal instrumento conjunto tornar este tipo de acordo aceitável para os agricultores de ambos os continentes. Estamos prontos a mobilizar em massa em toda a Europa para pôr fim a este acordo”.
Resumindo: O instrumento conjunto é apenas mais uma tentativa meio cínica de fazer passar um acordo fundamentalmente destrutivo que, no seu cerne, quer promover a exportação de produtos que impulsionam a desflorestação, as emissões de gases com efeito de estufa, as violações dos direitos humanos e empurrar a Amazónia e outros biomas cruciais para além do ponto de não retorno.
Nós, enquanto sociedade civil, rejeitamos esta tentativa de “lavagem verde” e apelamos aos governos para que finalmente abandonem o acordo comercial UE-Mercosul.
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Por: Friends of the Earth Europe, Ecologistas en Acción, European Coordination Via Campesina (ECVC), Collectif national Stop CETA-Mercosur, Aitec, PowerShift e.V. Germany, Handel Anders.
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Notas:
[1] https://friendsoftheearth.eu/wp-content/uploads/2023/03/LEAK-joint-instrument-EU-Mercosur.pdf
[2] Friends of the Earth Europe, Mercosul Files, 2023. https://friendsoftheearth.eu/wp-content/uploads/2023/02/FoEE_FACTSHEET_fev23_MERCOSUR.pdf . A desflorestação na Amazônia em 2021 é responsável por 77% das mudanças no uso da terra neste período, que é em grande parte impulsionado pela agricultura. A agricultura também atingiu seu maior nível de emissões no mesmo período. Em 2021, 25% das emissões de CO2 estavam ligadas ao sector agrícola.
[3] Climate Action Tracker https://climateactiontracker.org/countries/brazil/targets/ . Em 2021, as emissões de gases de efeito estufa do Brasil tiveram o maior aumento em quase duas décadas, em 12,2%, ficando muito aquém das metas do Acordo de Paris.
[4] O Sistema de Estimativa de Emissão e Remoção de Gases de Efeito Estufa (SEEG). “Emissões do Brasil têm maior alta em 19 anos”, 1 de novembro de 2022. https://seeg.eco.br/imprensa . Quase metade das emissões do Brasil são resultado de mudanças no uso da terra e actividades florestais
[5] Eurogrupo para os Animais. O comércio de produtos de origem animal alimenta a desflorestação. 3 de junho de 2022. https://www.eurogroupforanimals.org/library/trade-animal-products-fuels-deforestation
[6] F. Pendrill, UM Persson, J. Godar, T. Kastner. Desflorestação deslocada: comércio de commodities com risco florestal e perspectivas para uma transição florestal global. 2019. Anualmente, a UE importa commodities dos países do Mercosul com uma pegada de desmatamento de 120.000 hectares. Só a soja – um dos principais produtos definidos para mais exportações no acordo UE-Mercosul – é responsável por 31% da desflorestação importada para a UE.
[7] Poultry World, ‘Cercado pela gripe aviária, Brasil aumenta as exportações de aves.’ 21 de março de 2023. https://www.poultryworld.net/health-nutrition/health/surrounded-by-avian-influenza-brazil-ups-poultry-exports/
[8] O acordo não adopta totalmente a declaração da ONU sobre os direitos dos indígenas, princípio fundamental de “consentimento livre, prévio e informado” (FPIC), reduzindo-o ao consentimento prévio informado. Também não há menção de como as comunidades podem apresentar queixas por meio de revisão de conformidade e processos de solução de controvérsias.
[9] PowerShift. Mobilitätswende ausgebremst. Das EU-Mercosul Abkommen und die Autoindustrie. 2 de junho de 2022. https://power-shift.de/studie-eu-mercosur-abkommen-autoindustrie/