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Legalização dos segredos corporativos na UE

Legalização dos segredos corporativos na UE

Legalização dos segredos corporativos na UE

De como a indústria, as firmas de advogados e a Comissão Europeia trabalharam juntos para construir a legislação europeia sobre ”segredos comerciais”.

Este relatório é baseado na análise de centenas de documentos obtidos a pedido e trocados entre a C. Europeia (secção de Mercado Interno) e os principais lobbies dos grupos corporativos envolvidos no desenho da legislação europeia sobre os chamados “segredos comerciais”.
Em todo este processo, a principal mensagem da indústria tem sido a de que o roubo dos segredos comerciais é uma grave ameaça à economia europeia e exige uma iniciativa legislativa para melhorar e harmonizar as regras respectivas. A recomendação da indústria sobre este ponto foi definir os segredos comerciais como uma forma de propriedade intelectual.
Desde o início, a Comissão mostrou um grande interesse nessa ideia e decidiu coligir evidências para demonstrar que a “fragmentação legal” e o roubo dos segredos comerciais constituíam de facto uma ameaça.
Mas, na verdade, recorreu ao outsourcing de algumas firmas de advogados que têm um claro interesse específico em desenvolver novas ferramentas legais para os seus clientes corporativos. Efectivamente, a indústria e a Comissão agiram em conjunto, de mãos dadas, acordando na própria metodologia de recolha de dados para a pesquisa, organizando conjuntamente uma Conferência da Comissão para os Segredos Comerciais e chegando até a coordenar em conjunto uma conferência de imprensa.
De facto, a Comissão anuiu quase completamente às exigências da indústria, evitando criar uma nova categoria de segredos comerciais na UE, mas garantindo os meios legais à sua prossecução e reparação.

A colaboração entre a Comissão para o Mercado Interno e os grupos dos lobbies parece ter-se estendido à manipulação de outras comissões, preparando assim conjuntamente o Grupo de Avaliação de Impacto e manipulando também duas instâncias legislativas europeias: o Conselho de Ministros dos Estados Membros (EM) e o Parlamento Europeu.
Quando perguntada, a Comissão não desmente a maioria do que acabamos de dizer e não consegue explicar as razões pelas quais o seu trabalho quase diário com os lobbies seria um problema. Os emails mostram que o oposto é que é verdade. Ou seja, uma vez tomada a decisão de iniciar um novo projecto legislativo, a Comissão precisava da “ajuda” (?) dos lobbies. Por exemplo, a Comissão tomou decisões pro-activas relativamente aos grupos de lobbies, para se assegurar que o maior número possível de empresas participavam na consulta pública. Os grupo não pertencentes à indústria estiveram completamente ausentes do processo de desenho das leis até à consulta pública e nenhuma acção foi tomada pela comissão para os chamar a tomar parte nos trabalhos (uma larga maioria de organizações civis e cidadãos rejeitou o projecto…cerca de 75 a 80%).
Mas três outras observações adicionais se impõem a respeito da correspondência.
– Muitas vezes foram feitas referências às negociações em curso sobre o TTIP, para justificar as acções, uma vez que avanços legais similares estavam a decorrer do lado americano, ao mesmo tempo que decorriam influências por parte dos lobbies sobre os negociadores do TTIP, no sentido de proteger os segredos comerciais como sendo propriedade intectual no âmbito do TTIP.
– A manipulação por parte dos lobbies tornou-se mais fácil por falta de capacidade do lado do público nas discussões posteriores. Entre 2010 e 2012, apenas um funcionário político e o seu chefe de departamento estavam encarregados do desenvolvimento técnico do assunto. Em junho de 2012 um outro funcionário juntou-se-lhes. Outros níveis da administração também intervieram, mas apenas ao nível de direcção. Do outro lado, a indústria enviou à Comissão equipas de consultores, advogados, executivos, investigadores jurídicos e contactos de ex-académicos – todos livres de custos.
– A favor da Comissão, constatamos que houve dois momentos onde o chefe de missão contrariou propostas da indústria por irem demasiado longe do ponto de vista da independência política, embora o staff nada tenha escrito sobre o assunto. Referimo-nos a uma proposta de encontro por parte da indústria dos perfumes para discutir um certo padrão legislativo. O segundo momento foram os comentários zangados sobre contactos suspeitos entre uma firma de advogados que trabalhava para a Comissão, a Bake & Mckenzie e os grupos de lobbies activos sobre o assunto.
Em contraponto, houve diversas ocasiões onde os funcionários facilitaram de facto o trabalho dos lobbies da indústria, apresentando mesmo esses grupos aos consultores da Comissão. Quem não aprecia ajudas desinteressadas competentes para o seu trabalho??
Proposta bastante controversa
Em janeiro de 2015 um grupo de jornalistas franceses mobilizou-se massivamente contra uma proposta de lei sobre segredos comerciais agendada pelo governo no quadro de um pacote legislativo mais abrangente a apresentar ao parlamento. Esta mobilização invulgar foi realizada para defender a própria profissão. A proposta previa que a aquisição não autorizada, uso e divulgação de segredos comerciais seriam puníveis com multa de 375.ooo Euros e 3 anos de cadeia (agravados para o dobro se estivesse em risco a soberania do país, a segurança e os interesses económicos essenciais). A justificação era a de combater a espionagem industrial, mas o texto usava uma definição tão lata de segredo comercial que quase qualquer informação interna dentro de uma companhia poderia abranger tudo, desde reportagens sobre negócios perigosos, jornalismo de investigação sobre corporações até à confidencialidade das fontes jornalísticas. O governo percebeu imediatamente que o texto não era aceitável para a imprensa e retirou-o.
Mas isto foi apenas o começo. Em breve se tornou evidente que estas propostas representavam a integração nas leis francesas de elementos-chave do texto da UE a debater no Parlamento Europeu sobre o mesmo assunto e com a mesma justificação: combate à espionagem industrial. O esboço da directiva sobre a protecção de dados não disponíveis e informação sobre negócios contra a sua aquisição ilegal, uso ou divulgação foi publicado pela Comissão Europeia em nov. de 2013 e acrescentado e aprovado pelo Conselho Europeu em Maio de 2014.
Embora não prevendo as mesmas penas drásticas pensadas pelo governo francês (apenas tenta harmonizar a legislação civil, não criminal), a diretiva também atraíu as críticas de um largo espectro de grupos da sociedade civil incluindo o Observatório Corporativo Europeu, a Federação Europeia de Jornalistas, a Confederação de Sindicatos Europeus, o Wikileaks, ONGs, organismos de defesa dos denunciantes de abusos de poder e outras. A directiva europeia baseia-se na mesma definição vaga e abrangente de segredos comerciais. O texto define o segredo como sendo a norma e a liberdade de informação com excepção, colocando o ónus da prova sobre o jornalista ou sobre o denunciante, tendo estes de demonstrar que a divulgação terá sido necessária em defesa do interesse público. Tudo isto representa um ataque também à mobilidade dos trabalhadores e à possibilidade de responsabilização de empresas.
Igualmente, também se teme que a directiva proporcione mais argumentos legais às companhias, permitindo-lhes recusar a divulgação de dados junto das autoridades, no âmbito de autorizações de comercialização ou outras, tais como testes clínicos para medicamentos ou dados toxicológicos sobre produtos químicos ou alimentares. Estas informações são consideradas essenciais para garantir uma rigorosa avaliação científica dos produtos. A Comissão declara que o seu texto é neutro neste ponto, mas os lobbies continuam a pressionar o Parlamento Europeu (…). Ao ir tão longe no sentido de tornar os segredos comerciais uma nova categoria de propriedade intelectual, a directiva pode até limitar a livre circulação do conhecimento e dos trabalhadores e, por essa via, da própria inovação. Uma protecção mais exigente dos segredos comerciais é justificada como um modo de contribuir para a pesquisa e parceria entre companhias.
De facto, não há criação de uma nova categoria de propriedade intelectual, mas os donos dos segredos comerciais recebem os meios legais para agirem de modo comparável, como se fosse realmente uma nova categoria. O parlamentar francês M. Gallo(…) declarou em 2011: “uma coisa é tornar claro que a propriedade intelectual está associada ao desenvolvimento e outra são os direitos monopolistas que impedem a inovação e a criação”. Os casos recentes onde é usada a argumentação da protecção dos segredos comerciais pelas companhias em processos judiciais contra denunciantes, jornalistas e funcionários, justificam plenamente os receios sobre as consequências da directiva europeia contra as liberdades civis e o equilíbrio de poder entre empregadores e empregados.

Exemplo: o denunciante Antoine Deltour, uma das fontes do Luxleaks junto com o jornalista Eduard Perrin, o primeiro a revelar o caso, estão a ser processados pela agência PriceWaterHouseCoopers do Luxemburgo por alegada violação de segredos comerciais, após a escandalosa divulgação sobre fuga à taxação por parte de clientes da agência de conluio com o governo do Luxemburgo, abrangendo centenas de multinacionais. Tratou-se de uma massiva evasão fiscal e de uma criação de dívida no seio da UE.
A dimensão do problema não é ignorada pela Comissão. Na sua avaliação de impacto, discute-se até que ponto o texto pode ameaçar a liberdade de denúncia e a jornalística, mas conclui que “não limita desproporcionadamente a liberdade de expressão nem de informação, em particular a dos jornalistas, uma vez que há um equilíbrio de interesses “ entre os donos dos segredos e as liberdades referidas. A introdução de uma cláusula de salvaguarda para proteger jornalistas e denunciantes foi considerada claramente insuficiente por parte dos primeiros.
Nos EUA o segredo comercial é considerado uma forma de propriedade intelectual. Os processos em curso evidenciam que esse tipo de litigâncias se tornou uma fonte que permite às companhias expandirem aquilo que proclamam como sua propriedade, às custas do resto da sociedade, particularmente dos trabalhadores. Entre as litigâncias em curso, temos o caso de um médico que processou o estado da Pensilvânia por ser obrigado a assinar um acordo de não divulgação sobre a composição dos fluidos usados no fracking (…). Outro caso é o de 3 ex-desenhadores da Nike que processaram a empresa por compreenderem que ela tinha espiado a sua correspondência à procura de provas sobre partilha de segredos comerciais com a concorrente Addidas (…).
A harmonização das leis sobre competição ilegal não foi o caminho escolhido pela Comissão (…). Esta situação levanta várias questões. Como é possível que a Comissão se arrisque a atacar direitos fundamentais (…)? Como não previram que tal proposta enfrentaria séria oposição, a ponto de todo o texto arriscar uma rejeição? Será que os lobbies corporativos mais influentes desempenharam o papel principal?

Para descobrirmos, fizemos um pedido formal à Comissão de consulta documental (…) e a nossa intuição estava correcta. Recebemos centenas de documentos que partilhámos com os jornalistas (…) e este relatório descreve algumas das coisas que descobrimos nesses documentos.
A correspondência entre a Comissão e os grupos de lobbies que tentam influenciar o seu pensamento sobre a protecção legal dos segredos comerciais ilustra bem como a indústria consegue convencer a Comissão, uma vez que a discussão ocorre no vazio, apenas entre uns poucos indivíduos. Neste nível inicial e técnico da discussão, mas muito importante, o debate é manipulado, não intervindo quaisquer outros interessados nem o escrutínio dos media (…).
Sem qualquer dúvida, a força principal por trás da campanha da indústria tem sido o lobby Trade Secrets & Innovation Coalition (TSIC) cujas exigências à Comissão já em 2010 a fizeram agir. A TSIC é uma organização discreta, não tem website (…) e o seu trabalho tem sido facilitado pela firma de advogados White & Case até 2011. Depois passou para a Hill & Knowlton (HK), uma consultora de lobbies globais. As razões desta mudança não são claras, pois nenhuma das duas firmas de advogados respondeu às nossas questões. Uma explicação possível: Thomas Tindemans, conselheiro da W & C para a UE teve o dossier a seu cargo, mas depois foi para Bruxelas dirigir o escritório da H & K em 2010. Tomou de novo em mãos o dossier quando a TSIC escolheu a H & K algum tempo depois (…).

A White & Case, a representante dos interesses da TSIC é uma firma que não está registada nem a sua cliente ( e responde sempre às nossas perguntas com a resposta-tipo “no comments”). Mas em março de 2010, Tindemans escreveu directamente a um funcionário da Comissão: “Algo tem de ser feito àcerca das leis sobre segredo comercial”.
(…) As companhias por trás da TSIC (embora não declaradas) são a Air Liquide do gás, a Alstom dos transportes e energia, o gigante químico DuPont, a GE, a Intel, a Michelin, a Nestlé e a Safran dos componentes aeroespaciais. Algumas destas companhias influenciaram directamente a Comissão, através das acções da TSIC (…) Importa salientar que o dossier dos segredos comerciais não é a única avenida seguida pela CEFIC (European Chemical Industry Council). As negociações do TTIP são outra.
A 31 de outubro de 2012 uma proposta conjunta sobre alguns aspectos da Cooperação Regulatória entre a CEFIC e o American Chemistry Council (ACC) foi enviada ao representante americano do comércio onde se tornava claro como era importante assegurar a protecção de informação comercial confidencial: “Nada numa análise de impacto regulatório sobre a indústria química deve requerer a divulgação de informação confidencial, incluindo informação que comprometa interesses financeiros ou comerciais, uma vez publicada” (…).
Outros lobbies também influenciaram directamente a Comissão ao mais alto nível. A 7 de março de 2014, uma carta conjunta da EFPIA (lobby farmacêutico que ataca a divulgação de testes clínicos), a Europabio (lobby de indústrias biotécnicas que combatem a divulgação de dados tóxicos sobre OGM) e o ECPA (lobby dos pesticidas parceiro da CEFIC), dirigida a Catherine Day, secretária-geral da Comissão insiste:” nas nossas fortes preocupações sobre a implementação em curso de leis sobre acesso público a documentos. Os nossos parceiros estão extremamente preocupados sobre o caminho seguido respeitante à implementação de legislação sobre transparência europeia (…) e o seu provável efeito sobre a competitividade e atractividade da UE como um lugar para fazer negócio, por companhias inovadoras, incluindo muitas PME.”

Muito importante, Catherine Day respondeu favoravelmente a este pedido. “ A Comissão Europeia partilha os vossos receios no sentido de encontrar um equilíbrio correcto…”(…).
Nota: A ânsia de protecção de dados por parte das empresas contrasta vivamente com o desejo em sinal contrário em capturar, armazenar e vender os dados pessoais dos cidadãos e famílias de modo irrestrito além-fronteiras. A respeito deste ponto, o segredo dos dados pessoais é um valor a erradicar, enquanto os segredos comerciais ficam ainda mais protegidos.

 

Corporateeurope.org/power-lobbies/2015/04/towards-legalised-corporate-secrecy-eu
Corporate Europe Observatory – The Power of Lobbies, 27/04/2015
Tradução e adaptação de José Oliveira