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O TTIP (TAFTA) e a sua lógica totalitária

O TTIP (TAFTA) e a sua lógica totalitária

O TTIP (TAFTA) e a sua lógica totalitária

Em Paroles d’un croyant (Palavras de um crente), Félicité de Lamennais distingue “o homem mau que acorrentou os seus irmãos” para os explorar, fazendo-os trabalhar para ele em troca de um baixo salário, “do homem mau que lhes mentiu” dizendo-lhes que não há mais recursos e que aqueles que tiverem a sorte de ser empregados deverão trabalhar duas vezes mais por menos dinheiro, para sempre. O nome do primeiro é “Tyran, o outro não tem nome senão no Inferno”

Dito de outra forma, existe uma forma de exploração do homem pelo homem que ultrapassa aquela que é descrita por Marx e pelos seus seguidores. Estes últimos denunciam a lógica do lucro que exige a redução dos custos de produção, o aumento da produtividade, a procura de uma mão de obra sempre mais barata, a deslocalização. Ora, o que nos sugere Lamennais, é que nós podemos ser as testemunhas de uma forma de exploração que é pior do que a antecedente. Ela conduz ao puro e simples esmagamento dos indivíduos, que nada podem fazer, nem mesmo resistir, porque não existe nenhuma protecção contra um tal sistema que se estendeu a todas as esferas da vida social. Esta mentira conseguiu impor-se e todo o mundo e, mesmo as vítimas, acreditam nela.

É este tipo de exploração que visa submeter os Estados e os povos às multinacionais – implicando a renúncia dos governos a todas as políticas públicas em prol do ambiente e da saúde, dos direitos sociais, do bem-estar animal, da protecção da vida privada – que nós reconhecemos no projecto da parceria transatlântica, que tem recebido várias siglas: TAFTA, TIIP (Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento), GMT (Grande Mercado transatlântico), ATP (Acordo de Parceria Transatlântica para o Comércio e a Indústria).

 

Não falemos mais de ultraliberalismo mas de totalitarismo

A nossa hipótese é que com o TAFTA nós não temos somente uma questão de liberalização total do comércio, englobando todos os bens que, até agora, estavam fora do mercado, porque  correspondiam a um serviço público ou porque, ligados a um interesse geral, eles não devem ser objecto de especulação. Trata-se realmente de uma apropriação total pelas empresas privadas, quer sejam americanas ou europeias, do conjunto da vida privada e pública de cidadãos americanos e europeus e mesmo de cidadãos de outros países que queiram confrontar-se com este império.

Os processos utilisados, nomeadamente a criação de “tribunais” podendo condenar qualquer Estado signatário a pagar uma multa colossal por ter adoptado uma legislação contrária aos interesses das empresas privadas, impondo o conhecimento da origem e percurso dos alimentos, por exemplo, explicam que este endurecimento do ultraliberalismo e esta generalização do livre comércio participem da criação de uma ordem que submete a política aos interesses privados cuja actividade predadora  não poderá ser travada por nenhuma iniciativa individual ou colectiva.

É verdade que a Comissão europeia propôs, contra os Americanos, uma reforma destes mecanismos regulando os diferendos entre investidores e Estados. Ela deseja que os litígios sejam resolvidos não pelos tribunais ad hoc nomeados pelas partes, mas pelos juízes com assento num tribunal permanente e imparcial. (Leia-se: Bruxelas apresenta a sua versão renovada dos tribunais de arbritagem do TTIP (TAFTA) – ou tribunal permanente ou tribunais arbitrais – que jurisdição para o tratado transatlântico?)

No entanto, a questão de fundo continua a existir: o TAFTA coloca o problema da submissão dos Estados e dos Povos aos interesses exclusivos das multinacionais. Estas últimas podem pôr em tribunal os Estados, quando as suas legislações decorrentes da vontade popular e respondendo a questões de interesse geral, as prejudicarem. O efeito dissuassivo destes procedimentos bloqueará toda a decisão corajosa em matéria de ambiente, agricultura, saúde, etc. A soberania popular não será mais do que uma palavra, e qualquer  iniciativa local sobre soluções pertinentes para os problemas com que nos deparamos não terá nenhuma oportunidade de ser tomada em consideração. Se não queremos ser privados de toda a liberdade e assistir ao agravamento das injustiças,  à multiplicação infinita das distorções de que já tanto  sofremos, se recusamos  a impotência dos governos e dos indivíduos como uma fatalidade, é ainda tempo de o dizer.

Porque o sistema,  uma vez aceite pelos Estados signatários, vai impor a sua dinâmica de maneira implacável e irreversível. Esta irreversibilidade e a sua generalização, quer dizer esta lógica que consagra o primado dos  interesses de grupos privados, estender-se-à a todas as esferas da vida, em todas as escalas, dos indivíduos às colectividades locais e aos Estados, mas também ao mundo inteiro, sendo bem a prova que estamos confrontados com um novo totalitarismo. Este, diferentemente da tirania ou de regimes autoritários, caracteriza-se por três aspectos essenciais,tal  como o demonstrou Raymond Aron em Démocratie et Totalitarisme (Democracia e Totalitarismo). Em primeiro lugar, ele regula todos os domínios da vida. Em segundo lugar, priva os indivíduos da liberdade através do constrangimento e da ameaça que no caso ….será sobretudo financeira, como se vê com as multas exigidas pelos tribunais. Por fim, impõe uma ideologia desmesurada ao mundo inteiro.

 

Uma ideologia falsa e desmesurada fundamenta o TAFTA, este colosso de pés de barro

Esta ideologia contradiz tudo o que está acordado e reconhecido como justo para os cidadãos, os Estados, a Europa e mesmo as organizações internacionais: a luta contra o aquecimento climático, a protecção da biosfera, as normas de toxicidade e de segurança, tão importantes quando se trata da alimentação, o direito do trabalho, o bem-estar animal, o respeito pela vida privada, os direitos de autor. As consequências do TAFTA far-se-ão sentir na nossa vida quotidiana porque este sistema afectará os preços dos medicamentos, a formação profissional, a educação e a investigação, os equipamentos públicos, a imigração. Ele enterrará também a regulação que tinha sido considerada como um dos remédios que permitia lutar contra a especulação financeira na origem da crise dos subprimes de 2008 e da crise económica mundial daí decorrente. Do mesmo modo, com o TAFTA, não será posto nenhum travão ao açambarcamento das terras e dos recursos. No entanto, não é somente em razão das suas consequências catastróficas que do TAFTA ressalta uma forma de totalitarismo. Importa também compreender que a ideologia sobre a qual ele se alicerça e que vai ser imposta como sendo a única realidade, aquela contra a qual não se poderá mais lutar, é totalmente errónea e essencialmente desmesurada.

Trata-se de um monismo que conduz a uma confusão entre todas as esferas de bens ao proceder de maneira que o dinheiro possa comprar tudo.O empreendimento privado é concebido de maneira abstracta, como se se tratasse de uma entidade desligada do resto do mundo. Isto serve para justificar a ideia segundo a qual o lucro daqueles que possuem empresas pode ser um fim em si, qualquer que seja a maneira de o obter e o seu impacto sobre o ambiente, os homens e os animais, que constituem, no entanto, o ecosistema no qual, como diz o sociólogo Niklas Luhmann, uma empresa se insere. Assim, a ideia que tudo pode ser comercializado, que todos os bens e serviços são para organizar da mesma maneira, desde os serviços às pessoas, seja a  relação com os seres vivos ou com os produtosindustrializados, constitui o avesso de uma tripla negação do real:

negação da dimensão necessariamente relacional da empresa, da sua inserção num ambiente simultaneamente natural e social;

negação do sentido das actividades e do facto que a produção e a troca não podem ser organizadas da mesma maneira, submetidas às mesmas regras de eficácia ou de rendimento;

negação do valor dos seres humanos e não humanos implicados.

Esta homogeneização do real conduz a transformar a agricultura e a criação de gado em indústria em menosprezo das normas etológicas dos animais e da auto-estima das pessoas que exercem estas profissões. Ora, se parece que nenhum limite pode ser assinado na corrida ao lucro, que recomenda que se vá sempre mais além na exploração dos homens, da natureza e dos animais, isso não impede que esta empresa de domínio absoluto, não tenha nenhum fundamento filosófico. Ela apoia-se sobre uma concepção homogénea das coisas, que é contrária ao bom senso e aos conhecimentos práticos dos indivíduos. Ela é tão redutora que não resiste à análise. Só um embotamento generalizada da razão e dos sentidos pode tornar este sistema aceitável. O economicismo é um colosso com pés de barro e o TAFTA a sua arma de guerra, no momento em que os povos reconhecem que é preciso mudar o modelo económico e inventar outros indicadores de riqueza, sair do capitalismo de que o TAFTA é o rebento mais hediondo e o mais descomplexado.

 

O TAFTA provoca a desolação que torna impossível toda a resistência

É preciso ver que o TAFTA assenta numa base filosoficamente insustentável, para compreendermos porque é que ele está rodeado de segredo. Debruçar-nos-emos em seguida, sobre a incompatibilidade entre o que é “negociado em segredo” e os princípios da justiça numa democracia, porque esta opacidade não é um detalhe, mas a prova que estamos perante a mentira que é consubstancial a um sistema totalitário.

Os funcionários da Comissão Europeia e os seus homólogos americanos que trabalham neste dossier não querem deixar passar nada. Eles sabem que se os cidadãos puderem ler preto no branco os termos dos “acordos”, que são de facto preparados pelas multinacionais com a cumplicidade dos governos – os quais estão prontos a  providenciar tudo que lhes prometa crescimento – então ninguém aceitaria este mercado que não é um mercado de lorpas, mas um bilhete para o inferno. Eles procuram impôr este sistema, porque uma vez implementado, ninguém poderá fisicamente nem intelectualmente opor-se-lhe. Nem os Estados nem os indivíduos poderão fazer seja o que for sem pagar às multinacionais somas astronómicas, levando-os à ruína. Da mesma forma, a maior parte dos indivíduos, no fundo deles mesmos, adoptarão pouco a pouco a ideologia falsa que lhes foi imposta. Um tipo de homem nascerá, que alimentará este sistema que o fez nascer.

Com efeito, se os “acordos” previstos pelo TAFTA forem assinados, a vida privada e pública dos indivíduos, o seu trabalho, as suas actividades, os produtos que eles consomem, os serviços que utilizam, o seu pensamento, tudo será regido pelas multinacionais, que têm necessidade de invadir os domínios até então preservados afim de continuar a enriquecer. Como toda a ordem política, a ordem económica-política mundial que será posta em prática pelas multinacionais modelará um tipo de homem ou de herói, cujo cinismo será o reflexo, no plano dos traços de carácter e dos afectos, do sistema que o terá engendrado. Tal como viram Platão e Tocqueville, todo o regime político se alimenta de um tipo de homem que o reforça por sua vez. A especificidade do totalitarismo, o qual pode sobreviver ao nazismo dizia Hannah Arendt em Les origines du Totalitarisme (As Origens do Totalitarismo) é que ele nasce numa democracia de massa, do que ela chama a desolação, quer dizer, da impossibilidade dos seres em pensar o mundo comum, de ser outra coisa para além de forças de produção e consumidores. A resistência, hoje difícil, tornar-se-á impossível:

“A desolação é este impasse para onde são conduzidos os homens,  assim que a esfera pública da sua vida onde eles agem juntos na procura de um objectivo  comum, é destruída. (…) Fica apenas o esforço do trabalho, dito de outra forma, o esforço para se manter vivo, e a ligação ao Mundo como criação é quebrada. (…) O isolamento transforma-se em  desolação. (…) A dominação totalitária está fundamentada  sobre a desolação, sobre a experiência da absoluta não pertença ao Mundo.”

Esse dia será “um dia de luto sobre toda a Terra”, retomando a expressão de Félicité de Lamennais, a ruína de todos os princípios de liberdade e humanidade que a civilização ocidental, apesar das críticas que se lhe podem aplicar, tem defendido. Será o enterro do ideal de liberdade e de soberania do sujeito, que está nos fundamentos do liberalismo político, da filosofia dos direitos do homem e mesmo do liberalismo económico de Locke que cingia o direito de enriquecer, de acumular mais bens e dinheiro do que o necessário, aos limites  ligados à obrigação absoluta de não privar de víveres os outros homens tal como do acesso aos recursos. É este dia, chorado antecipadamente que nós desejaríamos prevenir com os meios que são os nossos, simultaneamente frágeis e firmes, quer dizer, com os utensílios da filosofia, e sem nos colocarmos no plano da ideologia. Porque o que importa, perante a descrição da catástrofe social programada, não é de pertencer a este ou aquele campo, à esquerda ou à direita, à esquerda da esquerda, ou à direita da esquerda, mas de impedir uma ruína social e moral que fará infinitamente mais vencidos do que vencedores.

 

Uma negação da democracia e o fabrico de uma falsa complexidade   

Ensinamos aos nossos estudantes que, quando se estudam os princípios da justiça numa democracia,  certas regras mínimas devem ser respeitadas nos debates em que intervêm várias pessoas tendo opiniões, valores e interesses divergentes. Recomenda-se que leiam John Rawls e o seu célebre livro: Théorie de la Justiçe (Teoria da Justiça), editado em 1971. Se nós não podemos entendermo-nos a priori sobre um conteúdo mercê da diversidade das nossas visões , tratemos ao menos de seguir certas regras que garantirão que ninguém sofre coerção, que o princípio da igualdade moral dos indivíduos é respeitado, porque todo o mundo, qualquer que seja o seu nível intelectual e social, tem o direito a ser escutado e que nós poderemos também fazer evoluir a lei, quer dizer, mudar de opinião, se tivermos novas informações sobre o assunto submetido a deliberação.

A transparência e a publicidade, que decorrem do reconhecimento da igualdade moral dos indivíduos, exigem que todas as discussões sejam publicadas, que as etapas conduzindo a tal ou tal decisão sejam explicadas e que nenhuma informação seja escondida. São regras mínimas, sem as quais nenhum debate sobre um problema que nos diga respeito, pode ser considerado justo. A revisibilidade é igualmente um princípio maior que evita de se fechar numa decisão que será reconhecida retrospectivamente como estando num impasse, tendo em conta os novos dados ou conhecimentos adquiridos. Os princípios são de tal modo importantes que eles têm inspirado o funcionamento dos comités de ética em vários domínios, em particular em Medicina, e que a sua violação, apesar de bastante frequente, num bom número de comissões distribuindo prémios e postos criou uma suspeição, muitas vezes justificada, de corrupção, que desacredita as instituições.

Ora, não somente nenhum destes princípios é aplicado às negociações sobre o TAFTA, como para além do mais se levanta a questão de uma instrumentalização da complexidade. Sob pretexto que o domínio do comércio e do investimento é complexo, esconde-se tudo ao público. Confiam-se os dossiers a funcionários de que praticamente ninguém conhece o nome e que não têm nenhumas contas a dar aos cidadãos. Só certos representantes políticos sabem quais são os termos dos “acordos”.

Como podemos nós tolerar isto? Como é que os nossos representantes políticos podem imaginar que nós vamos tolerar esta negação total de democracia? Pensam eles que os cidadãos são tão cegos, tão incompetentes e tão cobardes que os vão deixar actuar sem se mexerem? Exigir a publicação dos termos dos acordos seria uma primeira vitória. Certo, os lobbys e a poderosa organização TABC (Conselho de Negócios Transatllântico), que é um agrupamento de riquíssimos  empreendedores e que  conduziu este projecto de  mercado alargado, não o desejam. No entanto, não é sobre as modalidades da jurisdição regulando os litígios entre os investidores e os Estados que o povo se deve pronunciar, mas sobre o projecto em si mesmo: a submissão dos Estados às empresas privadas. Queremos nós um tal Mundo? Este projecto é compatível com os nossos  ideais, que nós desejamos que se espelhem nas políticas públicas sobre o ensino, a saúde, a segurança, o ambiente, a agricultura? É necessário que o pequeno número de coisas que nós sabemos  sobre o TAFTA seja submetido a um referendo nacional.

Numerosas  associações de cidadãos lançaram petições contra o TAFTA. Que nos seja permitido recolher a opinião da maioria dos cidadãos! Porque o segredo e o fabrico de uma falsa complexidade,  em conjunto com um isolamento numa rotina profissional que usa as melhores boas vontades, fazem com que os indivíduos não procurem mais compreender o que está a ser feito,  incluindo o que diz respeito aos seus interesses e aos dos seus filhos. Tão pouco quanto a dimensão pública da sua vida está em jogo e, com ela, a vida comum, que é constituída por obras naturais e culturais, das gerações passadas, presentes e futuras e pelos animais.

 

Despertemos, ainda é tempo!       

Despertemos, ainda é tempo! Nós não poderemos dizer: eu não sabia, eu não podia. O sentimento de impotência que nos vence é o produto do sistema que nos é imposto. Só na condição de cada um se levantar e ousar exprimir-se, reclamando a transparência e a publicidade nos debates sobre estes assuntos, o respeito do princípio da revisibilidade e a recusa de uma ordem irreversível e impositora  aos Estados e os povos de regras que são contrárias tanto ao interesse geral como aos interesses da imensa maioria dos cidadãos, só nessa condição nós poderemos tomar em mãos o nosso destino. Quem recusa caminhar de cabeça levantada aceita o inaceitável, a injustiça,a indignidade.
*Última obra editada: Os alimentos. Filosofia do corpo político, Le Seuil, 2015  

“LIBÉRATION”

“LibéRation de Philo” 24 de Setembro 2015

O Tafta e a sua lógica totalitária

Por Corine Pelluchon*

Dedico este texto a Erri de Luca