Chegaram ao fim as negociações do Tratado da Carta da Energia. No passado dia 24 de Junho, a Comissão Europeia, juntamente com outras partes contratantes do controverso Tratado da Carta da Energia (TCE), anunciou um “acordo de princípio” sobre os resultados negociados para a “modernização” deste obsoleto tratado.
Sabia-se que qualquer resultado deste processo teria de ter em conta a arquitectura improvável do conjunto das mais de 50 partes contratantes, que abarca a UE e os seus países-membros – com a honrosa excepção da Itália -, bem como numerosos países da Ásia Central emergidos da fracturação da União Soviética, como o Quirguistão, o Cazaquistão ou o Turquemenistão.
No entanto, a Comissão terá alegadamente conseguido obter tudo aquilo que tinha colocado em cima da mesa e declara este processo como bem sucedido. Assim sendo, será o resultado satisfatório? De modo nenhum. No seu habitual jeito neoliberal e, em questões decisivas, desdenhoso das alterações climáticas, a Comissão partiu para as negociações com propostas carentes de ambição, inaceitáveis do ponto de vista do clima, do ambiente e dos cidadãos.
Vejamos:
- O TCE „modernizado“ vai continuar a proteger os investimentos fósseis existentes e os seus activos até, pelo menos, 2033. Mesmo novos investimentos fósseis irão ser ainda protegidos até 15 de Agosto de 2023 e, embora deixem de o ser após essa data, foram acordadas amplas excepções para novos investimentos em gás, os quais continuarão a usufruir de protecção total até 2030 ou mesmo 2040. Será isto alinhar o TCE com o Acordo de Paris e o Pacto Ecológico Europeu? Certamente que não. O que isto significa é que até 2030 o TCE vai continuar a actuar como séria ameaça para a medidas pró-climáticas que visem limitar o aumento da temperatura a 1,5 °C e a constituir um risco para as contas públicas já que milhares de milhões de impostos dos contribuintes poderão continuar a fluir para os bolsos das empresas poluidoras via tribunais arbitrais privados (ISDS) caso seja considerado que a acção governativa em prol do clima interfere com os lucros das empresas energéticas; Ou seja, o que isto significa é meter travão a fundo na transição energética, apesar de esta ser um dos objectivos principais do Pacto Ecológico Europeu, e desbaratar montantes astronómicos em indemnizações enviesadas ao invés de fazer o tão necessário investimento nas energias renováveis.
- Alterações ao TCE requerem o voto unânime das partes contratantes e, tendo em vista a extrema disparidade entre os países, o alcance de qualquer acordo nestes termos parecia impossível. Porém, como é habitual quando convém ao big business, a Comissão Europeia tirou da cartola uma nova abordagem de escolha à la carte para servir os diferentes gostos: num passe de mágica, surgiu a “Abordagem de Flexibilidade”: a UE e o Reino Unido podem agora ir eliminando muitíssimo gradualmente a protecção do investimento dos fósseis, enquanto as outras partes contratantes a podem manter indefinidamente. Ao gosto do freguês, como se a crise climática não fosse urgente nem deixasse cada vez menos espaço para o faz-de-conta ecológico.
- Uma das mais escandalosas componentes do TCE é a justiça paralela VIP para investidores estrangeiros, consubstanciada no questionável mecanismo de resolução de litígios entre investidores e Estados (ISDS). Este trunfo “dentado” das empresas mantém-se intocado no TCE modernizado. E não só mantém a sua virulência, como a “Definição de Actividades Económicas” no TCE “modernizado” foi alargada a uma longa lista de materiais e tecnologias energéticas que não estavam protegidas até agora, incluindo a captura, utilização e armazenamento de dióxido de carbono (CCUS), o hidrogénio, amoníaco, biomassa, biogás e combustíveis sintéticos entre outros ‘materiais e produtos energéticos’. Os estados oferecem assim o flanco dos cidadãos ainda mais generosamente.
- O TCE é magnânimo quando se trata de garantias aos investidores; a chamada cláusula de caducidade assegura que os investimentos se mantêm protegidos durante 20 anos após a retirada de um país do TCE. Este é, aliás, um dos argumentos frequentemente invocados, e que a Comissão usa, para a permanência no TCE. Acontece que o que não é dito, é que essa cláusula poderia ser neutralizada de imediato se os países se retirassem conjuntamente do TCE e celebrassem um acordo adicional, no qual excluíssem entre si casos ISDS iniciados ao abrigo deste tratado. Mas não é esse o objectivo da Comissão; este privilégio retumbante permanece intocado e nem sequer uma redução deste período de protecção foi considerada.
Assim, embora melhorando alguns pontos totalmente aberrantes de que o TCE padecia (p. ex. acabando com os casos ISDS entre Países-Membros da UE – que vários acórdãos do Tribunal de Justiça da UE já tinham demonstrado serem incompatíveis com a legislação da UE -, ou ainda introduzindo novas definições de “Investimento” e “Investidor” que finalmente fecham a porta ao uso de empresas “caixas de correio”, exigindo que apenas investidores “com interesses económicos substantivos” possam instaurar casos ISDS), o TCE “modernizado” continua a ser uma arma da indústria da energia contra o clima e contra os cidadãos. É de todo incompreensível, nesta época de enorme insegurança energética e múltiplos desafios políticos, que os estados assim se rendam às mãos dos interesses de lucro das gigantes energéticas.
Dado a conhecer o acordo preliminar alcançado sobre o texto da modernização do TCE, o calendário prevê agora que os Estados-Membros da UE e o Parlamento Europeu analisem o acordo e que seja desencadeado entre as Partes Contratantes do TCE um chamado procedimento de silêncio, que implica que se nenhuma Parte Contratante quebrar o silêncio, o texto irá ser formalmente adoptado na Conferência da Carta da Energia, prevista para Novembro; Ou seja os procedimentos adequam-se ao interesse máximo de fazer passar o novo texto.
A publicação do texto juridicamente válido está prevista para 22 de Agosto. É depois necessário o acordo do Conselho da UE, bem como a aprovação do Parlamento Europeu para que a UE possa adoptar o TCE reformado na Conferência da Carta da Energia, em Novembro.
De momento, caiu por terra a esperança de que o TCE estivesse prestes a ir parar à sepultura que o deveria encerrar. Há duas semanas, cinco jovens vítimas da crise climática apresentaram uma acção judicial contra 12 países da UE no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, pedindo ao Tribunal que defenda os seus direitos, impedindo que o TCE continue a proteger os combustíveis fósseis e a bloquear a acção climática.
Os olhos estão agora postos em países como a Espanha e os Países Baixos, que, tendo-se já manifestado em favor de uma retirada conjunta, poderão não aceitar este fraco compromisso. O mesmo poderá acontecer no Parlamento Europeu, que já se pronunciou pela saída coordenada do TCE. E, finalmente, países coerentes e corajosos poderão decidir retirar-se individualmente do TCE, como fez a Itália em 2015.
Contudo, é esclarecedor que a Comissão Europeia, à revelia de todas as declarações sobre a sua liderança rumo à neutralidade carbónica, tenha preferido vergar-se às vontades das multinacionais e ao primado da economia (como, aliás, fez com o acto delegado sobre a Taxonomia), ao invés de soltar uma grilheta que asfixia a ecologia, condenando o planeta ao sobreaquecimento e ao caos. O novo texto do TCE continua a determinar que as protecções dos investidores prevalecem sobre as disposições de outros tratados e, portanto, sobre o Acordo de Paris. Por outras palavras, as expectativas de ganho ou lucro dos investidores são prioritárias face à protecção do clima e do bem comum.
Podemos ir-nos preparando para que o Conselho e até o Parlamento Europeu sigam o mesmo ditame, continuando assim a sacrificar o futuro do Planeta.






