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O Tratado da Carta da Energia, um inimigo na luta contra o aumento de preços

O Tratado da Carta da Energia, um inimigo na luta contra o aumento de preços

O Tratado da Carta da Energia, um inimigo na luta contra o aumento de preços

O Le Vif, um orgão de comunicação belga, publicou no passado dia 27 de Fevereiro um artigo sobre a relação do Tratado da Carta da Energia com o preço das energias e conclui que não há alternativas, a UE tem de sair do TCE. Pela sua actual relevância, aqui deixamos o artigo traduzido, podendo o original ser encontrado aqui.

Entre Dezembro de 2021 e Janeiro de 2022, os preços da energia aumentaram novamente, em média 45,5% para a electricidade e 57% para o gás.

Contudo, o Tratado da Carta da Energia (TCE), que está a ser renegociado de 1 a 4 de Março, poderia impedir a adopção de medidas estruturais ambiciosas de protecção social para contrariar este aumento de preços e proteger as famílias, uma vez que coloca os Estados sob a ameaça permanente de serem processados pelas empresas.

O TCE: um obstáculo para combater a pobreza de combustível e o aquecimento global

O TCE é um tratado internacional de comércio e investimento no domínio da energia que vincula a Bélgica e 54 outras partes, incluindo a União Europeia e todos os seus estados membros (com excepção da Itália, que saiu em 2016). Negociado na sequência da queda do Muro de Berlim, este tratado dá às multinacionais o privilégio, graças à cláusula ISDS[1] incluída, de atacar os Estados perante árbitros privados quando estes tomam medidas susceptíveis de ter um impacto nos seus lucros futuros. Os árbitros têm o poder de exigir aos Estados o pagamento de milhares de milhões de euros em indemnizações. Por exemplo, a empresa alemã RWE está actualmente a processar o governo holandês por ter adoptado uma lei que prevê a eliminação gradual das centrais eléctricas a carvão até 2030 e está a exigir uma compensação de 1,4 mil milhões de euros por isso.

O caso holandês não está isolado. Com 145 reivindicações conhecidas até à data, o TCE é o tratado que gera o maior número de reivindicações arbitrais no mundo. A pandemia não parece ter abrandado estes ataques uma vez que foram registadas 15 novas queixas desde o seu início. Mesmo medidas legítimas para combater a pobreza energética, tais como a reintrodução de preços regulados ou a criação de um imposto sobre os lucros extraordinários dos produtores de energia, poderiam, portanto, ser postas e poderiam, portanto, ser postas em causa.

Regulamentação dos preços da energia

Entre 2008 (quando a liberalização dos mercados energéticos da UE foi concluída) e 2020, os preços médios da electricidade, gás, combustíveis sólidos e energia de aquecimento subiram quase 25%.

A regulação dos preços da energia é permitida pela legislação da UE, mas poderia ser contestada pelas multinacionais com base no TCE, como no caso da Hungria, que foi sujeita a processos arbitrais pela Electrabel, entre outros, na sequência da sua decisão em 2006 de restabelecer o sistema de preços regulados. Embora o caso tenha sido decidido a favor da Hungria, os custos e despesas totais do processo, que acabaram por ser suportados pelo contribuinte, ascenderam a quase 5 milhões de dólares. É de salientar que os Estados não têm nada a ganhar com este sistema de arbitragem uma vez que não podem instaurar processos de forma semelhante aos investidores estrangeiros, para os quais ele está reservado.

Fazer com que as empresas de energia contribuam

O aumento dos preços do gás levou a lucros sem precedentes para os produtores de electricidade. Engie, por exemplo, acaba de anunciar um lucro líquido de 3,7 mil milhões de euros em 2021. O facto de estes lucros recorde estarem a ser feitos enquanto as famílias lutam sob o peso das suas contas é insuportável.

O Estado belga deveria tomar medidas para redireccionar este excedente financeiro de forma a aliviar os consumidores, especialmente os mais vulneráveis. Uma opção razoável para alcançar este objectivo seria criar um imposto sobre estes lucros extraordinários. Tal imposto foi introduzido no Reino Unido entre 1997 e 1998 com o objectivo de limitar lucros empresariais excessivos na sequência da privatização dos serviços públicos. Contudo, a introdução de um imposto semelhante, embora legítimo, não escaparia à potencial ameaça de uma queixa ao abrigo do TCE.

Sair do TCE: a única solução realista

Se o TCE é um obstáculo à adopção de medidas sociais para combater o aumento dos preços, não é a sua renegociação, em curso desde 2020 – para o tornar oficialmente compatível com o Acordo Climático de Paris -, que irá alterar esta situação. De facto, a famosa cláusula de arbitragem do sistema ISDS foi simplesmente excluída do âmbito destas negociações, condenando-as ao fracasso. Além disso, cada pequena alteração ao tratado requer o acordo de todas as partes. Felizmente, existe outra solução para os Estados e para a União Europeia: preparar-se agora para sair do TCE.

Sair do TCE é inteiramente possível, mas este passo deve ser acompanhado da desactivação da cláusula de caducidade (“sunset clause”). Esta outra cláusula do TCE permite aos investidores privados atacarem um Estado durante vinte anos após a sua retirada! Para a neutralizar, várias vias legais foram atentamente analisadas, nomeadamente num relatório recente do Parlamento Europeu[2].

Libertarmo-nos do colete-de-forças que é o TCE para combater eficazmente a pobreza energética e investir maciçamente em políticas de transformação ecológica socialmente justas e criadoras de emprego deve ser a prioridade dos nossos Estados. Felizmente, as coisas estão a avançar nesta direcção. Muitas vozes estão agora a levantar-se no Parlamento Europeu a favor da retirada da UE e dos Estados-Membros do tratado. Sete Estados-Membros, incluindo França e Espanha, anunciaram igualmente a sua intenção de abandonar o TCE se a renegociação em curso não for bem sucedida.

É perigoso deixar a ameaça do TCE pendurada. Por conseguinte, apelamos firmemente aos vários governos belgas responsáveis pelas questões energéticas para que assumam as suas responsabilidades já que os riscos evidenciados são tão elevados.”

Autores: Renaud Vivien (Chefe do Departamento de Política, Entraide et Fraternité) e Céline Nieuwenhuys (Secretária-Geral da Federação dos Serviços Sociais)

[1] Acrónimo de “Investor-State Dispute Settlement” (Resolução de Litígios entre Investidores e Estados).

Law and their Consequences for EU Law” Parlamento Europeu (Janeiro 2022).

[2] “Sunset Clauses in International 

https://trends.levif.be/economie/politique-economique/le-traite-sur-la-charte-de-l-energie-ennemi-dans-la-lutte-contre-la-hausse-de-prix/article-opinion-1529689.html?cookie_check=1647245388