No Dia Mundial do Comércio Justo que hoje, dia 14 de Maio, se assinala, ZERO e TROCA alertam que o consumo Português é responsável por milhares de hectares de desflorestação e pela perda de biodiversidade em ecossistemas tropicais e subtropicais.
Estima-se que a União Europeia (UE) é o segundo maior bloco importador de mercadorias agrícolas ligadas à desflorestação de florestas tropicais e subtropicais em África, na Ásia e na América do Sul, sendo responsável por 16% da desflorestação associada ao comércio internacional em 2017, num total de 203.000 hectares(i). O óleo de palma, a soja e a carne de bovino são as mercadorias com maior impacto, seguidas pela madeira, o cacau e o café. Só Portugal foi responsável por mais de 4.500 hectares de desflorestação em 2017, mais de metade desta desflorestação ocorreu em países do Mercosul(ii) – sobretudo no Brasil.
O Conselho e o Parlamento Europeus estão a discutir a proposta de regulamento publicada pela Comissão Europeia a 17 de Novembro de 2021, com o objetivo de garantir que as cadeias de abastecimento Europeias não causam desflorestação e degradação das florestas, proposta esta que será levada a plenário em Setembro. Embora seja uma proposta positiva, terá de sair mais robusta das negociações, para que seja eficaz no cumprimento dos objetivos que a mesma preconiza.
A produção animal é o principal motor da desflorestação causada por Portugal
De acordo com a análise do TRASE (dados de 2017), Portugal contribui para a destruição de florestas tropicais sobretudo através da importação de soja e milho de países da América do Sul, particularmente do Brasil. Das 1,4 milhões de toneladas de soja importadas por Portugal em 2021, metade veio do Brasil – quase 70% das importações extra-UE (Instituto Nacional de Estatística – INE – 2022). A quantidade de soja importada do Brasil duplicou desde 2012 (INE 2022). A expansão da fronteira agrícola causada pelas monoculturas de soja tem levado à destruição de ecossistemas ricos em biodiversidade e importantes para a estabilidade climática do planeta, como o Cerrado, a Mata Atlântica e a Amazónia, mas também o Pantanal, por via de contaminação proveniente dos sistemas de produção agrícola. A par destes problemas também existem violações de Direitos Humanos através da apropriação de terras e recursos naturais a comunidades locais, assim como por ataques concertados que muitas vezes levam à perda de vidas.
A UE é, mundialmente, o 2.º maior bloco importador de soja e o maior importador de milho do Brasil
A importação de soja e milho para Portugal serve sobretudo o sector pecuário industrial. Segundo o Recenseamento Agrícola (RA) de 2019, a intensificação pecuária em Portugal tem levado ao aumento
dos efectivos de bovinos e de suínos, sendo que nos últimos 20 anos a dimensão média dos efectivos de bovinos mais que triplicou e houve uma duplicação quanto aos suínos. Os efectivos de bovinos e de suínos aumentaram em mais de 10% e de 15%, respectivamente, nos últimos dez anos, levando à alocação de boa parte dos recursos agrícolas do país para a produção animal – com 2/3 das terras aráveis destinadas à produção de forrageiras e a prados temporários (RA 2019), e 60% da produção nacional de cereais (exceptuando o arroz) a ser destinada à alimentação animal (Estatísticas Agrícolas 2020 – INE). Ainda assim, as importações de grão para a pecuária têm aumentado desde 2012.
O acordo de comércio UE-Mercosul aumentará a produção e a exportação agrícola para a UE, com recurso a pesticidas proibidos na Europa
Após cerca de 20 anos de negociações, em Junho de 2019, a UE e o Mercosul chegaram a um acordo comercial provisório que prevê a liberalização das importações através da redução ou eliminação das tarifas de exportação para 82% dos produtos agrícolas provenientes do Mercosul, tais como a carne bovina, a soja, a cana-de-açúcar e os biocombustíveis. O acordo facilitará também a exportação de produtos industriais da UE para os países do Mercosul, nomeadamente pesticidas e fertilizantes de síntese. Na América do Sul, a soja, o trigo e a cana-de-açúcar, por exemplo, são cultivados com recurso a vários pesticidas proibidos na UE que acabam assim por chegar ao prato dos cidadãos europeus. Só em 2019, foi aprovado o uso de 169 pesticidas no Brasil, 24 dos quais proibidos na UE.
O acordo UE-Mercosul irá levar ao aumento da produção e da exportação de soja, de carnes (bovina, suína e aves) e de biocombustíveis (produzidos a partir de cana-de-açúcar e milho) devido à redução dos custos associados ao trânsito de mercadorias, podendo resultar numa destruição florestal de 122 mil a 260 mil hectares, com especial incidência em áreas adjacentes a terras indígenas.
O Brasil deverá ser o país do Mercosul mais afetado pelo acordo, estando áreas como a Amazónia, o Cerrado e o Gran Chaco em elevado risco. No que diz respeito à soja, os maiores produtores do Brasil encontram-se no Cerrado, levando indirectamente a expansão agrícola nesta zona à desflorestação da Amazónia devido ao efeito de deslocação – a substituição dos sistemas silvopastoris do Cerrado por monoculturas de soja “empurra” os criadores de gado de pastagem para a floresta Amazónica. Neste processo são também ameaçadas as comunidades locais que ficam assim sujeitas à sua própria erradicação cultural e física, ao que acresce a exposição a contaminantes de origem agrícola.
O acordo UE-Mercosul, assim como todos os acordos comerciais da UE desde 2011, inclui um capítulo dedicado ao comércio e desenvolvimento sustentável, mas os compromissos de protecção ambiental, climática e dos Direitos Humanos são meramente voluntários e não vinculativos. Além disto, as medidas contra a exploração ilegal de madeira e a desflorestação não definem uma via de recurso legal perante situações de violação do disposto nas cláusulas contidas no capítulo sobre o desenvolvimento sustentável.
Nos últimos dois anos, a Comissão Europeia tem procurado melhorar as garantias de proteção do acordo e eliminar as suas deficiências uma vez que tanto a UE como os países do Mercosul não mostram vontade de o abandonar. Além da necessidade de uma aplicação vinculativa do capítulo de comércio e desenvolvimento sustentável, este acordo deveria garantir a aplicação eficaz da proposta de regulamento anti-desflorestação e do regime de devida diligência que esta comporta já que a transparência exigida nas cadeias de abastecimento implicará melhores práticas de rastreamento da origem dos produtos nos países do Mercosul e, assim, uma protecção ambiental, climática e dos Direitos Humanos mais eficaz.
Um regulamento no caminho certo, mas em risco de ser enfraquecido
- O regulamento para produtos livres de desflorestação(iii) proposto pela Comissão Europeia assume um caminho de transparência e de responsabilização de toda a cadeia de abastecimento, para que se torne cada vez mais difícil a circulação de mercadorias ligadas à desflorestação ou à degradação de ecossistemas florestais. No entanto, algumas definições vagas e aspectos pouco claros podem enfraquecer o regulamento e deixá-lo vulnerável a emendas que comprometam a sua eficácia, tais como:
- As isenções para empresas, resultantes de uma definição excessivamente abrangente de pequenas e médias empresas (PME)(iv), podem deixar de fora cadeias importadoras.
- A falta de responsabilização do setor financeiro permitirá que se continue a financiar a destruição de florestas tropicais.
- Mercadorias como a borracha e o milho, a par de outros ecossistemas para além das florestas, já deveriam estar incluídos na primeira versão do regulamento, caso contrário resultarão danos evitáveis e um atraso considerável na concretização dos objetivos do diploma.
- Não estão devidamente acautelados mecanismos de recurso à justiça em caso de violação dos Direitos Humanos e outros direitos.
O sucesso deste regulamento vai, pois, depender do empenho e ambição dos Estados-Membros, crucial durante os próximos meses.
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Notas aos editores:
i TRASE: https://www.trase.earth/about/
ii Organização intergovernamental que estabelece um mercado comum entre vários países da América do Sul
iii European Comission’s proposal for a Regulation on deforestation-free products:
https://ec.europa.eu/environment/publications/proposal-regulation-deforestation-free-products_en
iv Considera-se PME empresas até 250 funcionários e uma faturação anual de 40 milhões de euros, definição que engloba 99% das empresas da UE, podendo criar lacunas consideráveis na aplicação do regulamento
Fontes bibliográficas: