A União Europeia proclamou 2023 como o ano da América Latina na Europa e a Europa na América Latina. Isto significa também, que pretendem assinar todos os acordos comerciais com os Estados da América Latina que estão actualmente em preparação, a saber, UE-Chile, UE-Mercosul e UE-México.
Todos estes acordos seguem uma lógica obsoleta, destinada a favorecer as multinacionais em detrimento das pessoas e do planeta.
A respeito do acordo de Livre Comércio UE-México, a TROCA, juntamente com outras 148 organizações, subscreveu uma declaração dirigida aos líderes políticos do México e da União Europeia, na qual apelam a que não ratifiquem o Acordo de Livre Comércio “modernizado”entre a União Europeia e o México (TLCUEM).
Seguidamente transcrevemos o conteúdo da dita declaração, que invoca seis razões para a não ratificação:
As organizações da sociedade civil, os sindicatos, defensores dos direitos humanos, do bem-estar animal e do meio ambiente que assinaram esta carta dirigem-se aos líderes políticos do México e da União Europeia (UE) para solicitar que não ratifiquem o Acordo de Livre Comércio “modernizado”entre a União Europeia e o México (TLCUEM). O texto foi negociado em secretismo, sem debate ou consulta pública, e foi finalizado em Abril de 2020, no meio de uma das piores crises sanitária, social e económica do mundo, desencadeada pela pandemia de COVID19. Recordamos que o TLCUEM está em vigor há vinte anos e, longe de cumprir as suas promessas, só gerou graves impactos sociais, económicos e ambientais, sobretudo para o México. O acordo “modernizado” apenas aprofundará os problemas do TLCUEM pelos seguintes motivos:
1. Apenas protege os investidores estrangeiros e coloca em risco as urgentes mudanças a favor do clima, do meio ambiente e das pessoas
O novo acordo terá um novo capítulo sobre investimentos que visa consolidar o uso da arbitragem internacional como mecanismo de solução de litígios de investidores contra Estados. O preocupante é que o Sistema de Tribunal de Investimento (ICS) proposto não corrige as piores partes do mecanismo clássico de resolução de litígios investidor-estado (ISDS). Isso significa que os investidores da UE poderão processar o México (e vice-versa) num sistema de justiça paralelo que prioriza os seus interesses privados, enquanto as regulamentações ambientais, sociais e para o bem comum em geral ficam para segundo plano. Nos últimos anos, muitos desses processos foram movidos por investidores transnacionais para atacar medidas e legislações ambientais. Por exemplo, entre 2010 e 2013, a multinacional espanhola ABENGOA-COFIDES intentou uma acção judicial no México depois de se recusar a cumprir com os regulamentos ambientais e recebeu 48 milhões de dólares “como indemnização e por lucros perdidos”. Na sequência das recentes reformas de energia e de mineração de lítio do México, que foram confirmadas pelo Supremo Tribunal, algumas empresas transnacionais europeias, incluindo a Iberdrola, já ameaçaram o México com uma acção judicial ao abrigo do ISDS. Houve também vários processos deste tipo contra Estados da UE por adoptarem medidas de política climática, por exemplo, o processo empresarial do gigante alemão da energia RWE contra os Países Baixos por causa dos seus planos de eliminação gradual do carvão até 2030. A assinatura do TLCUEM levará, portanto, a mais processos judiciais em ambos os lados do Atlântico, pondo em risco os orçamentos nacionais e atrasando as mudanças necessárias a favor do clima, do ambiente e do bem-estar humano e animal.
2. Permitirá que as empresas europeias continuem a violar os direitos humanos no México impunemente
As empresas europeias têm uma longa história de violações de direitos humanos e ambientais no México com impunidade praticamente total, o que será reforçado com o TLCUEM modernizado, pois continua sem incluir mecanismos regulatórios eficazes. Alguns exemplos são encontrados em:
- abusos tarifários e violação do direito de acesso à energia eléctrica, no âmbito do controle monopolista da Iberdrola, Naturgy, Acciona Energía, Fisterra;
- a violação do direito de acesso à água e as tarifas arbitrárias da Agsal-Suez (hoje Veolia) em Coahuila, Veracruz, Cidade do México e Cancun.
- No caso das empresas de engarrafamento de água, a desapropriação e devastação que a Bonafont/Danone está a deixar na Zona Choluteca, onde a resistência dos Povos Unidos está sendo criminalizada e reprimida.
O novo tratado também aprofundará a impunidade das empresas europeias que participam da construção de megaprojetos com graves impactos socioambientais no território, como o Projecto Integral de Morelos (PIM), os parques eólicos, o Corredor Interoceânico no Istmo de Tehuantepec, ou o Trem Maia, entre outros. Nesses casos, ou se violou directamente o direito à consulta e consentimento prévio, livre e informado e culturalmente apropriado ou à recusa, ou sua implementação fora dos padrões internacionais está gerando grandes divisões e conflitos entre as comunidades. O TLCUEM “modernizado” não inclui cláusulas vinculativas que reflictam qualquer compromisso destas empresas de respeitar os direitos humanos, e não proporciona às pessoas afectadas mecanismos eficazes de acesso à justiça, reparação e não repetição. A cláusula de direitos humanos no acordo global UE-México nunca foi activada, apesar das propostas para o fazer por organizações da sociedade civil e dentro do próprio Parlamento Europeu.
3. Não permite avanços nos direitos das mulheres e na igualdade de género
O projecto “modernizado” de Livre Comércio UE-México reforça os padrões patriarcais entrincheirados na sociedade mexicana e europeia. O tratado não prevê qualquer mecanismo para acabar com a discriminação contra as mulheres e as pessoas LGBTIQ, nem inclui uma linguagem inclusiva de “género”. Neste sentido, o acordo não fala da necessidade de modernizar e questionar os papéis masculinos e femininos e as suas diferentes tarefas sociais. Além disso, as poucas cláusulas explícitas sobre as mulheres que existiam na antiga versão do tratado foram eliminadas, nomeadamente o art. 36º que menciona as mulheres de baixos rendimentos e o art. 37º sobre o papel das mulheres nos processos produtivos. A promoção da igualdade de oportunidades só é agora mencionada quando se faz referência às normas laborais aprovadas pela OIT, sem mecanismos que possam ser controlados. Os diferentes capítulos do tratado irão prejudicar a maioria das mulheres, especialmente as mais marginalizadas, de duas maneiras. Como trabalhadoras, agricultoras ou empresárias, correm o risco de serem empurradas para fora do mercado pela concorrência desigual das empresas europeias, especialmente nos sectores dos lacticínios e da carne. Por outro lado, o capítulo alargado dos contratos públicos bem como o capítulo da protecção da propriedade intelectual promovem um modelo económico que torna os serviços públicos como os cuidados de saúde ou o acesso a medicamentos a preços acessíveis mais caros. A precariedade previsível causada pela reprimarização do modelo económico apenas reforçará um modelo patriarcal que aumentará as já inúmeras vítimas da violência baseada no género.
4. Ameaça a agricultura camponesa e corrói a soberania alimentar
Os acordos de Livre Comércio como o TLCUEM estão directamente ligados ao sistema agro-industrial global, o que tem um impacto devastador no direito à agricultura e comércio independentes, no direito à alimentação e à saúde, além de ser uma das principais causas da crise climática. Neste contexto, o ataque à agricultura camponesa – privatização e apropriação de terras – expulsa as pessoas e desencadeia a migração, ao mesmo tempo que subsidia monoculturas agro-exportadoras altamente dependentes de organismos geneticamente modificados (OGM), agrotóxicos, energia, água, trabalho escravo virtual e mega-fazendas que estiveram na origem de pandemias como a gripe A/H1N1. Os maiores beneficiários do TLCUEM serão as empresas agro-industriais mexicanas e europeias. Actualmente, transnacionais alemãs como a Bayer-Monsanto continuam a importar OGM e agrotóxicos, com o glifosato à cabeça, conhecidos por causarem doenças mortais como o cancro. Por outro lado, a União Europeia está a pressionar o México a assinar a 91ª versão da Convenção Internacional para a Protecção de Novas Variedades de Plantas (UPOV91). A mera aceitação de todo o sistema UPOV, em qualquer das suas versões, legitima a privatização das sementes e constitui um ataque directo à agricultura camponesa independente, ou seja, ao pilar da soberania alimentar. Cabe mencionar que os produtores na Europa também serão afectados pelo aumento das importações do México.
5. Impede o avanço de um sistema energético mais sustentável, descentralizado e democrático
A incorporação de um capítulo sobre energia no TLCUEM visa proteger a privatização do sector, que foi consolidada com a reforma constitucional sobre energia de 2013. Esta privatização teve impactos directos sobre a população, tais como o aumento dos preços da electricidade. Além disso, consolidou o modelo de grandes mega-projectos (tanto PPPs como iniciativas privadas) para a produção de electricidade, levando à privatização de terras comunitárias, repressão e agressão contra as populações afectadas, impactos ambientais e corrupção. Muitas mega-empresas europeias, e particularmente espanholas, de energia têm um forte interesse no México e são grandes promotoras deste tratado. As empresas que já investem neste sector incluem Ibedrola, Naturgy e Acciona de Espanha, Enel de Itália e Engie de França, entre outras.
6. Compras e serviços públicos em risco
O TLCUEM “modernizado” abre pela primeira vez uma grande parte do mercado de contratação pública às empresas europeias no México. Isso significa que os interesses privados prevalecerão sobre os públicos, partindo do pressuposto de que o que é bom para os investidores é bom para as empresas. Tal suposição não tem em conta os impactos dos interesses empresariais na polarização dos rendimentos e da riqueza, na deterioração ambiental e na degradação social, na mercantilização da cultura e da história. Afecta também o próprio desenvolvimento empresarial, contra os micro e pequenos produtores, em benefício do grande capital transnacional, europeu e mexicano. Finalmente, prejudica as práticas sociais e de solidariedade bi-continentais, em benefício do grande capital, que não tem bandeiras. O desenvolvimento, tanto europeu como mexicano, deve dar prioridade às condições e aspirações legítimas das suas sociedades, e não ao lucro.
Em conclusão, queremos recordar que o México se tornou um dos principais paraísos industriais do mundo, ou seja, um dos laboratórios mais avançados para o comércio livre e a desregulamentação. O resultado tem sido uma devastação económica, social e ambiental sem precedentes, e uma multiplicidade de “zonas de sacrifício” ou “infernos ambientais”, que continuam a ceifar milhares de vidas todos os anos. Não se deve esquecer que muitas destas empresas são também as principais responsáveis por décadas de privatização e pilhagem do sector público na Europa, comprometendo direitos fundamentais como o direito à habitação, o direito à alimentação, o direito à água e o direito à energia.
Acreditamos que o TLCUEM é o triunfo do capital transnacional europeu e mexicano em detrimento das condições de vida das populações de ambos os lados do Atlântico e do meio ambiente.
Pelo que aqui foi exposto, preocupa-nos que o contexto da guerra na Europa seja usado como pretexto para acelerar a ratificação do acordo, com as graves implicações que isso teria para a população mexicana e europeia. Para que o futuro seja viável e sustentável, o modelo de política comercial do século 21 deve colocar o bem-estar das comunidades, dos povos e os activos ambientais em primeiro lugar.
Por isso, nós, organizações da sociedade civil europeia e mexicana dizemos NÃO ao acordo de comércio e investimento UE-México! E exigimos que nossos líderes políticos se oponham à sua ratificação.