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A proposta de regulamento para produtos livres de desflorestação e o acordo de comércio UE-Mercosul

A proposta de regulamento para produtos livres de desflorestação e o acordo de comércio UE-Mercosul

A proposta de regulamento para produtos livres de desflorestação e o acordo de comércio UE-Mercosul

O problema é que em muitas situações a produção destas matérias-primas promove a destruição de vastas áreas de florestas tropicais e de outros ecossistemas ricos em biodiversidade. Assim, colocam em causa a sobrevivência de muitos animais e plantas, assim como das comunidades locais e tradicionais. Por exemplo, fomentam a expulsão dos povos indígenas das suas terras, a promoção do trabalho precário e a mão de obra infantil.

Esta é uma das frases ditas nesta “Pequena História sobre a Desflorestação” (vídeo abaixo) cujo intuito é chamar à atenção para a relação entre a produção/consumo e a desflorestação e degradação ambiental que estão a ocorrer a um ritmo alarmante. Estas processos são não só graves por si só, como contribuem e agravam outros fenómenos, nomeadamente as alterações climáticas, a perda de biodiversidade e a violação de direitos humanos.

Em 2017, a União Europeia (UE) contribuiu enormemente para a desflorestação e degradação das florestas através do consumo de produtos e matérias-primas, sendo responsável por 16% da desflorestação associada ao comércio internacional. Assim, a Comissão Europeia (CE) apresentou, em Novembro de 2021, uma proposta de regulamento com o objectivo de garantir que as cadeias de abastecimento europeias e os produtos consumidos na Europa são livres de desflorestação.

Contudo, ao mesmo tempo que a UE procura estabelecer mínimos obrigatórios de responsabilidade e transparência nas suas cadeias de abastecimento, também fomenta uma agenda de comércio internacional que se mostra incompatível com estes objectivos. Um dos casos flagrantes, especialmente no que toca a problemas de desflorestação, é o do Acordo UE-Mercosul, sobre o qual tem aumentado a pressão para assinatura e ratificação, especialmente desde que despoletou a guerra na Ucrânia como já referimos em publicações prévias (aqui e aqui).

Este acordo de comércio livre, que tem vindo a ser negociado de forma descontinuada há mais de 20 anos, promete, por um lado, produtos mais baratos no mercado europeu, como carne, couro, grãos (ex.: soja, milho, café), madeira e biocombustíveis, entre outros, e, por outro lado, mais exportações de mercadorias europeias, como automóveis, maquinaria e produtos químicos, para o bloco sul-americano. Estas alegadas vantagens comerciais serão possíveis graças à redução e/ou eliminação das tarifas aduaneiras previstas no acordo que, consequentemente, se mostram altamente encorajadoras da expansão do modelo de agricultura industrial e da exacerbação dos seus efeitos negativos locais – expropriação de terras, violência rural (contra povos indígenas, comunidades locais, activistas ambientais), contaminação por agroquímicos, perda de biodiversidade, destruição de biomas (ex.: Amazónia, Cerrado, Gran Chaco) – e globais, nomeadamente o agravamento da crise climática. Em relação a este último aspecto, já vários estudos de impacto demonstraram que o acordo UE-Mercosul vai provocar um aumento significativo das emissões de gases com efeito de estufa tanto devido ao incentivo que oferece à extracção e produção intensivas, como do transporte entre os dois blocos comerciais, nomeadamente o transporte marítimo que liberta globalmente cerca de mil milhões de toneladas de gases com efeito de estufa para a atmosfera todos os anos. Assim, este acordo está em clara contradição com os objectivos assumidos pela UE, tanto no Pacto Ecológico Europeu como no Acordo de Paris, especialmente no que concerne ao objectivo climático de limitar o aumento da temperatura global a 1,5°C.

Não é novidade que a UE pretende assumir o lugar de líder em sustentabilidade. No entanto, o bloco europeu tem “mascarado” muitos dos seus custos climáticos e ambientais ao externalizá-los para países terceiros através das relações comerciais que estabelece, juntando a isto elevados custos sociais para todas as partes envolvidas. Assim, as mercadorias consumidas nos Estados Membros da UE, por serem produzidas e/ou extraídas noutros países, como aqueles que fazem parte do bloco Mercosul, não entram na contabilidade climática europeia e permitem a desresponsabilização dos operadores envolvidos nas cadeias de abastecimento.

É precisamente por abordar estes aspectos que a proposta de regulamento anti-desflorestação se mostra um passo no bom sentido, tanto para práticas comerciais verdadeiramente sustentáveis e responsáveis como para a justiça socio-ambiental. Ainda assim, o regulamento peca por não só por não ser suficientemente ambicioso e abrangente (como já explicámos mais detalhadamente aqui), como também por não ser acompanhado das mudanças necessárias noutras áreas políticas que estão intimamente ligadas à sua eficácia e que assim a comprometem, nomeadamente as políticas comerciais internacionais da UE. O acordo UE-Mercosul é um dos exemplos neste âmbito, indo no sentido diametralmente oposto ao deste regulamento no que concerne ao combate à desflorestação e aos impactos ambientais/ecológicos, além de ser incontestavelmente danoso para a agricultura familiar e local de ambos os lados do Atlântico.

Por isso, não só é preciso “criar leis que exijam mais responsabilidade à indústria e uma maior transparência ao longo de toda a cadeia de abastecimento”, tal como refere o vídeo em relação à proposta de regulamento, como é crucial e urgente que sejam reformadas as políticas comerciais que fomentam práticas contrárias a estas, nomeadamente os acordos de comércio livre como o UE-Mercosul. Coerência precisa-se!