No dia 24 de Junho é dado a conhecer o resultado do longo e opaco processo de “modernização” do obsoleto Tratado da Carta da Energia (TCE).
Numerosos e diversificados foram os apelos dirigidos aos governos para se retirarem deste tratado dos anos 90, conhecido por dar cobertura legal a mais de uma centena de processos multimilionários de investidores estrangeiros contra estados, conduzindo, em grande parte dos casos, ao pagamento de indemnizações astronómicas por parte dos contribuintes. Entre esses muitos apelos, consta uma petição com mais de um milhão de subscrições, 400 organizações a nível internacional, 460 líderes e cientistas climáticos, 280 eurodeputados e deputados, 30 milhões de Jovens europeus, Federação Europeia de Energias Renováveis e 278 grupos da sociedade civil empenhados nas questões do meio ambiente e muitos mais.
Também o mais recente relatório do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change – Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas) refere claramente que o TCE e o seu mecanismo de Resolução de Litígios Investidor-Estado (ISDS na sigla em inglês) pode ser utilizado por empresas de combustíveis fósseis estrangeiras para bloquear políticas públicas e legislações nacionais destinadas a eliminar gradualmente a utilização, prospecção ou exploração dos combustíveis fósseis.
Face à incompatibilidade do TCE com as exigências climáticas, bem como ao carácter arcaico do ISDS, a União Europeia (UE) promoveu fortemente uma “modernização” deste perigoso tratado. O processo, porém, ressentiu-se da exigência de unanimidade para alterações significativas, num clube de mais de 50 países, muitos deles com uma economia muito dependente dos combustíveis fósseis, como por exemplo o Cazaquistão, o Turquemenistão ou o Iémen.
Não surpreende, pois, que ao fim de 14 rondas de negociação o resultado venha a apontar para um compromisso fraco, que ficará extremamente aquém dos objectivos do mandato da UE, a saber:
- Assegurar que o TCE não seja um obstáculo para o cumprimento do Acordo de Paris ou para a transição energética preconizada no Pacto Ecológico Europeu,
- Reformar o sistema de Resolução de Litígios Investidor- Estado do TCE e
- Alinhar a protecção do investimento com as normas da UE.
Apesar da falta de transparência em que decorrem as negociações, sabe-se que, no que respeita à protecção aos combustíveis fósseis, a proposta da UE prevê que os investimentos existentes em carvão, gás e petróleo continuem a ser protegidos pelo ISDS do TCE até meados de 2030, enquanto certos investimentos em gasodutos ficariam protegidos mesmo até 2040. Não só estas metas são incompatíveis com a emergência climática, como ainda seriam sujeitas ao princípio da flexibilidade, permitindo que só a elas aderissem os países que assim o desejarem.
Quanto ao mecanismo ISDS, que foi já considerado pelo Tribunal de Justiça da UE como incompatível com a legislação europeia quando aplicado entre Estados-Membros, ele não foi sequer incluído nos temas a reformar. O TCE “modernizado” manter-se-á assim profundamente anti-democrático. O ISDS é uma “justiça” paralela privada, especial para os mais poderosos.
Ainda assim, Ignacio Arróniz Velasco, do Think Tank E3G, propõe um conjunto de sete critérios de referência para avaliar se o resultado da “modernização” do TCE poderá vir a ser considerado aceitável. Na sua opinião, caso algum destes critérios não seja integralmente cumprido, os Estados-Membros da UE deverão preparar-se para uma saída coordenada do TCE.
Segundo o especialista, o novo TCE deverá:
- Delimitar claramente a linguagem de protecção do investimento, nomeadamente para evitar os abusos relativos à abrangência do chamado “Tratamento Justo e Equitativo”.
- Equilibrar as regras de expropriação, de modo a limitar significativamente as alegações de “expropriação indirecta”, que os investidores podem usar para prejudicar qualquer política que afecte os seus modelos de negócio.
- Excluir empresas “caixas de correio” e limitar os direitos dos accionistas a reclamarem perdas por meio de métodos fraudulentos.
- Alinhar totalmente o TCE com as negociações multilaterais de reforma do ISDS.
- Eliminar a protecção de todos os investimentos em combustíveis fósseis (carvão, gás natural, petróleo e produtos petrolíferos) após a entrada em vigor do acordo alterado, mas o mais tardar até 2025.
- Proteger apenas soluções energéticas fiáveis e comprovadas e
- Assegurar a coerência com os acordos climáticos e ambientais, reconhecendo claramente que qualquer política ou decisão dos signatários, tomada para cumprir os seus compromissos no âmbito do Acordo de Paris, não deve constituir uma violação da protecção dos investidores.
Em Portugal, o TCE tem passado praticamente despercebido do público e dos meios de comunicação em geral. Continua por realizar o amplo debate sobre o TCE que foi recomendado ao governo pelo parlamento português com base num projecto de resolução do Partido Ecologista Os Verdes, em Fevereiro do ano passado. Nessa altura, foi lamentavelmente rejeitado um projecto de resolução do PAN “recomendando ao Governo português que abandone o Tratado da Carta da Energia”.
Neste contexto, é de louvar o recente projecto de resolução do LIVRE, que recomenda ao governo que “se posicione favoravelmente a uma denúncia coletiva do Tratado da Carta da Energia em sede de Conselho Europeu e nas formações relevantes do Conselho da União Europeia”.
No dia 24 saberemos se os governos estão à altura de garantirem o seu “direito a regular” em prol dos cidadãos e do Planeta, numa época que exige resposta a crises como a invasão russa da Ucrânia e a necessidade da aceleração drástica da transição energética para cumprir os objectivos do Acordo de Paris e do Pacto Ecológico Europeu. Isso requer um quadro flexível para a tomada de decisões em matéria de energia e fortes investimentos em energia limpa – e não um tratado obsoleto que salvaguarda o pagamento de indemnizações multimilionárias pelas “legítimas expectativas de lucro futuro” da indústria fóssil.
Só uma saída coordenada da UE deste arcaico tratado poderá garantir maior justiça e o alinhamento com os objectivos climáticos que a mesma UE preconiza e o Planeta exige.






