Entre 17 e 23 de Fevereiro, teve lugar a Semana Europeia de Combate à Pobreza Energética, chamando a atenção para esta realidade que tem vindo a ser cada vez mais reconhecida como um problema grave, embora muitas vezes invisibilizado, em toda a União Europeia (UE).
Tendo relação directa com o nível económico, a saúde, o bem-estar e a participação na sociedade, a pobreza energética é entendida hoje em dia como a incapacidade de obter um nível social e materialmente necessário de serviços energéticos domésticos cuja falta cause desconforto ou esteja associada a dificuldades. Neste sentido, Portugal é um dos países com níveis mais elevados de pobreza energética doméstica, apenas atrás da Eslováquia, Hungria e Bulgária, estando dois a três milhões de portugueses em situação de pobreza energética e, segundo um inquérito realizado pelo Portal de Arquitectura e Construção Sustentável, vivendo a grande maioria da população (entre 80 e 90%) com desconforto térmico nas suas casas. Esta entidade refere ainda que, para cerca de 1,2 milhões de agregados familiares portugueses, o consumo de energia representa mais de 10% do seu rendimento mensal e as suas habitações ficam ainda assim aquém da climatização ideal.
Apesar do problema da pobreza energética ser multidimensional, o custo da energia é um dos seus pontos fulcrais. Entre 2008 (quando a liberalização dos mercados energéticos da UE foi concluída) e 2020, os preços médios da electricidade, gás, combustíveis sólidos e energia de aquecimento subiram quase 25%. De acordo com um policy brief de 2021 do Observatório de Ambiente, Território e Sociedade, nos últimos anos, os preços da eletricidade para os consumidores domésticos em Portugal têm sido dos mais elevados da UE. Na segunda metade de 2018, Portugal foi o país em que a eletricidade foi mais cara para as famílias e em que os preços do gás estiveram também entre os mais elevados. Além dos preços altos, em 2018 os impostos e taxas incluídos nas faturas da eletricidade dos portugueses constituíram 55% do preço final. Não se mostra então surpreendente que, segundo os dados do Eurobarómetro relativos ao ano de 2018, 56% dos portugueses tenham considerado que assegurar preços razoáveis de energia deve ser uma prioridade. Ainda assim, em 2019, quase 20% dos portugueses foram incapazes de manter as suas habitações adequadamente aquecidas, sendo este um valor bastante elevado em relação à média da UE (7%).
Se, por um lado, muitas famílias lutam sob o peso das contas energéticas, por outro o aumento dos preços tem permitido lucros elevadíssimos para os produtores e investidores do sector. A EDP, por exemplo, teve um lucro líquido de 826 milhões de euros em 2021. Faria por isso todo o sentido que houvesse intervenção governamental para o redireccionamento deste excedente financeiro, aliviando assim os consumidores. Em teoria, isto seria não só possível, como legítimo. Contudo, a implementação de medidas como a reintrodução de preços regulados ou criação de um imposto sobre lucros extraordinários, teriam fortes chances de não escapar à ameaça (e potencial instauração efectiva) de um processo judicial ao abrigo do TCE.
O TCE foi negociado após a queda do Muro de Berlim e oferece protecção aos investimentos estrangeiros no sector energético, um privilégio possível graças à cláusula ISDS incluída que permite a estes investidores processarem Estados perante árbitros privados quando os Estados tomam medidas passíveis de ter um impacto nos seus lucros, exigindo por isso indemnizações de milhares de milhões de euros. O TCE exerce uma influência sub-reptícia nas políticas públicas (o chamado chilling effect) já que fazer mudanças, por exemplo, ao actual modelo energético pode desencadear acções judiciais milionárias contra os Estados. Isto coloca-os sob a ameaça constante dos investidores e cria um enorme obstáculo à adopção de medidas estruturais ambiciosas, neste caso, de protecção social, que permitam assegurar o acesso à energia e a eliminação da pobreza energética.
Convém relembrar também que, desde 2020, estão em curso as negociações para a modernização deste tratado, tendo a 11ª ronda de negociações decorrido entre 1 e 4 de Março do ano corrente. Um dos objectivos principais deste processo de modernização é tornar o TCE compatível com o Acordo de Paris e com as necessidades urgentes impostas pelas alterações climáticas. Contudo, poucos progressos foram feitos até ao momento, sendo que qualquer modificação ao tratado requer acordo de todas as partes contractantes (algo que não existe até agora). Para além disto, a cláusula de arbitragem ISDS foi simplesmente excluída do âmbito destas negociações, ainda que seja devido a ela que o TCE constitua este enorme obstáculo.
Só desde o início da pandemia, que agravou a pobreza energética na UE mas não travou as arbitragens, foram registados 15 litígios no âmbito do TCE. Como já foi mencionado, medidas legítimas para combater a pobreza energética podem despoletar este tipo de processos judiciais, mesmo sendo permitidas pela legislação da UE, como aconteceu com a Hungria, Bulgária e Albânia. Estes países foram processados e requeridos a pagar elevadas somas por tentarem limitar os lucros obtidos através de investimento no sector energético e/ou por implementarem medidas com o objectivo de tornar os preços da electricidade mais acessíveis. O caso da Hungria ocorreu em 2006 na sequência da decisão do governo de reestabelecer um sistema de preços regulados, o que fomentou a instauração de um processo judicial por parte de investidores como a Electrabel S.A.. Embora o caso tenha sido favorável ao Estado húngaro, os custos e despesas totais do processo, que são pagos pelos contribuintes, perfizeram mais de 4,5 milhões de euros.
Ainda assim, o secretariado do TCE e a indústria de arbitragem usam e abusam do problema da pobreza energética como forma de promover a expansão do tratado. Desde 2012, o secretariado do TCE tem dado grande destaque ao potencial do TCE para atrair investimento estrangeiro para o sector da energia e ajudar por esse meio a erradicar a pobreza energética que atinge grande parte da população dos países visados por esta expansão, tais como o Burundi, a Nigéria ou o Paquistão. Porém, não só não existem evidências de que a adesão ao TCE reduza a pobreza energética, como os privilégios concedidos aos investidores através do sistema ISDS tendem a produzir o efeito contrário, como ficou claro nos exemplos dados anteriormente, ou seja, fomentam a continuidade e agravamento deste tipo de pobreza.
Perante estes factos, a única solução realista para a UE e para os seus Estados-Membro é a saída do TCE, que deve acontecer de forma conjunta para possibilitar a neutralização da cláusula de caducidade (“sunset clause”). Esta cláusula permite aos investidores instaurarem processos judiciais a Estados que já se tenham retirado do tratado por um período de vinte anos após a saída. Embora este aspecto faça alguns países hesitar, já vários Estados-Membro se manifestaram publicamente a favor desta solução, entre eles a França, a Espanha e a Polónia, que já anunciaram ter a intenção de abandonar o TCE caso o processo de modernização em curso não seja bem sucedido.
É importante fazer o mesmo apelo aos restantes países da UE uma vez que só a saída do TCE poderá garantir que uma abordagem eficaz aos problemas vigentes seja possível. A emergência climática exige medidas urgentes, como a transição energética, sendo que esta deve ser baseada numa política energética equitativa, inclusiva e democrática com padrões de justiça ambientais e sociais sólidos. É preciso que Portugal, assim como os restantes países da UE, assumam as suas responsabilidades perante os cidadãos e se retirem deste tratado nocivo. Só assim será possível realizar uma transformação ecossocial justa em que o acesso à energia, que é um serviço essencial, deixe de ser um luxo permitido a cada vez menos pessoas.