No dia 1 de Setembro, saiu no jornal Público um artigo de opinião da TROCA, dedicado ao primeiro caso ISDS contra Portugal. Este caso (Suffolk and others v Portugal), que a TROCA tem acompanhado nos últimos anos, está relacionado com o processo de resolução do BES, pelo qual dois fundos americanos se dizem lesados, apesar de só terem adquirido os seus créditos meses depois do evento pelo qual reclamam danos. No nosso artigo apresentamos, em traços gerais, a história completa deste caso, incluindo aspectos cruciais que não têm tido cobertura mediática assinalável, e sem deixar de referir os milhões de euros que o processo já custou ao erário público, e que podem vir a tornar-se em centenas de milhões, no caso de Portugal perder. Concluímos apelando à renegociação de todos os acordos que amarram Portugal ao mecanismo ISDS, para impedir que acções deste tipo voltem a ser possíveis.
No sentido de complementar a informação disponibilizada no artigo, assinalamos vários pontos relevantes sobre esta matéria:
- Portugal é signatário de 35 tratados bilaterais de investimento actualmente em vigor, dos quais só um não contém provisões ISDS. O acordo ao abrigo do qual decorre o presente caso contra Portugal foi assinado com as Ilhas Maurícias em 1997 (e aprovado pelo Decreto nº 25/98, de 22 de Julho). O Artigo 9º deste acordo (“Diferendos entre uma Parte Contratante e um investidor da outra Parte Contratante”) estabelece a possibilidade de recurso ao ISDS, através do Centro Internacional para a Resolução de Diferendos Relativos a Investimentos (ICSID), instituição que é parte integrante do Banco Mundial;
- Dez anos depois do colapso do BES, muitos dos lesados do BES continuam sem reaver as poupanças que tinham investido no banco. Estes cidadãos particulares não têm acesso ao ISDS nem podem recorrer a um sistema de justiça paralelo para verem a sua situação resolvida.
- O empréstimo que motiva o caso contra Portugal foi feito ao BES pela Goldman Sachs, através da empresa Oak Finance Luxembourg SA, criada para o efeito. Com um valor total de 835 milhões de dólares americanos, destinava-se a um investimento em petróleo na Venezuela, financiando a companhia estatal Petróleos da Venezuela, SA. O empréstimo, feito apenas dois meses antes da queda do BES, terá resultado de contactos entre Ricardo Salgado e o ex-governante José Luís Arnaut, que a Goldman Sachs contratara para integrar o seu International Advisory Board.
- Os fundos norte-americanos que agora recorrem à arbitragem internacional não estiveram envolvidos no empréstimo original da Oak Finance. Infelizmente, à data que escrevemos, vários artigos online de jornais portugueses (como o Expresso, o Jornal de Negócios e o ECO) continuam a referir que a Elliott International e a Silver Point Capital “emprestaram dinheiro ao Banco Espírito Santo (BES) semanas antes do seu colapso”, apesar de esta informação não ser correcta. Os fundos em causa só começaram a demonstrar interesse pela dívida do BES em Agosto de 2014, já depois de Carlos Costa, então Governador do Banco de Portugal, ter anunciado a resolução do BES, – como, aliás, foi noticiado pelo próprio Jornal de Negócios, que, citando o Público num artigo de 18 de Agosto de 2014, informa que fundos “abutre” (entre os quais é nomeada a Elliott) estariam então “em contacto com sociedades de advogados portuguesas a analisar a oportunidade de investimento em obrigações do Banco Espírito Santo (BES) e do Grupo Espírito Santo (GES)”. Segundo referido em documentos oficiais do caso disponíveis no site do ICSID, os fundos só adquiriram créditos do empréstimo ao BES em Fevereiro de 2015, e, segundo argumentos apresentados pelo Estado Português, te-lo-iam feito ilegalmente. Esta ordem cronológica é também referida por um artigo do The New Zealand Herald de Abril de 2015, no qual se dá notícia de que o envolvimento de fundos abutre, entre os quais a Elliot International, dataria de depois do colapso do banco.
- No artigo mencionamos, a título de exemplo do historial de Paul Singer, um episódio em que a NML Capital Limited, subsidiária da Elliott sediada nas Ilhas Caimão, conseguiu que um tribunal no Gana confiscasse, durante dois meses e meio, um navio da marinha argentina. O navio em causa, a Fragata Libertad, esteve detido no porto de Tema entre 2 de Outubro e 18 de Dezembro, até ser libertado como resultado de uma decisão do Tribunal Internacional do Direito do Mar, que declarou a detenção da fragata ilegal à luz do direito internacional. Outro exemplo digno de referência, pelos contornos insólitos, diz respeito ao Peru: depois deste país ter entrado em incumprimento (default) para com os seus credores, em 1984, a NML comprou títulos de dívida não paga no valor de 11 milhões de dólares, que usou para processar o Peru e obter o direito a uma indemnização de 58 milhões de dólares. Quando, em 2000, o presidente Alberto Fujimori, acusado de corrupção e graves violações dos direitos humanos, se viu forçado a fugir do país, Paul Singer, que havia logrado confiscar o avião presidencial do Peru, conseguiu finalmente que o valor de 58 milhões lhe fosse pago, como contrapartida pela devolução deste avião, a bordo do qual Fujimori pode assim escapar para um exílio no Japão.
- Portugal está a ser representado legalmente pela sociedade de advogados Cuatrecasas, Gonçalves Pereira & Associados. O contrato, no valor de 2,25 milhões de euros, foi feito por ajuste directo, contornando o requisito de concurso público através de uma excepção aplicável a casos em que não existisse concorrência “por motivos técnicos”.
- No nosso artigo assinalamos e celebramos dois desenvolvimentos recentes e da maior importância no sentido de desvincular Portugal do ISDS:
- A adesão ao Acordo Relativo à Cessação da Vigência de Tratados Bilaterais de Investimento entre os Estados-membros da UE, em 2022 – Este acordo foi redigido na sequência de uma decisão do Tribunal da Justiça da União Europeia (conhecida como a “decisão de Achmea”), que considerou que as cláusulas de arbitragem internacional em acordos bilaterais entre Estados-Membros da União Europeia eram incompatíveis com a lei comunitária. O Acordo de Cessação, assinado por uma larga maioria dos países da União Europeia, cancelou todos os acordos bilaterais de investimento entre os países signatários (mais de uma centena), clarificando assim a impossibilidade do uso do ISDS a nível intra-europeu;
- A saída de Portugal do TCE, iniciada em 2023, e pela qual a TROCA se bateu durante anos, em coordenação com uma rede de organizações europeias parceiras.
Estes desenvolvimentos inserem-se numa crescente tendência internacional de rejeição do ISDS, num contexto em que vários países estão a denunciar os seus acordos de investimento explicitamente devido aos danos que o mecanismo lhes tem causado. O Equador é um caso notável por ter incluído na sua constituição de 2008 um artigo (422º) que proíbe a adesão do país a acordos com arbitragem internacional. Assinalamos também o exemplo de Espanha, que, apesar de ter perdido vários casos de ISDS ao abrigo do TCE, se tem recusado a pagar as indemnizações que lhe são exigidas segundo os tribunais arbitrais.