A TROCA – Plataforma por um Comércio Internacional Justo, juntou-se às mais de 120 organizações da sociedade civil (OSC) e sindicatos da Indonésia e da União Europeia numa declaração conjunta que apela à suspensão das negociações do acordo de comércio livre entre a União Europeia e a Indonésia, o Acordo de Parceria Económica Global (CEPA).
Iniciadas em 2016, as negociações de um acordo comercial de alto risco entre a UE e a Indonésia ganharam renovada pressão com a entrada em funções de uma nova Comissão e de um novo Governo indonésio. E embora se reconheça a importância de uma relação aprofundada entre a UE e a Indonésia, baseada na solidariedade e na cooperação comercial, a declaração das OSC expressa as preocupações existentes relativamente às implicações do CEPA, em particular nos direitos humanos e no ambiente: o acordo constitui uma ameaça para o ambiente e para o clima, bem como para os direitos das mulheres, dos povos indígenas, dos trabalhadores, dos pequenos agricultores e dos pescadores. Além destes aspectos, a questão das matérias-primas é particularmente controversa.
A posição da UE em relação à Indonésia é marcada pelo seu grande interesse em adquirir matérias-primas (neste caso em particular, o níquel), necessárias à sua agenda (in)sustentável de “transição” energética e digital. Uma posição simbólica da sua hipócrita abordagem ao comércio internacional: a constante externalização de custos ambientais e sociais para países terceiros, dos quais depende, enquadrada num extractivismo neocolonial.
A Indonésia possui algumas das maiores reservas de níquel do mundo, um recurso importante para a transição energética, utilizado na produção de aço inoxidável e de baterias para veículos eléctricos. Contudo, a abundância de recursos naturais não é garantia de desenvolvimento económico: o valor é geralmente criado mais acima na cadeia de valor e, no caso do níquel, ocorre principalmente na produção de aço inoxidável e de baterias. Reconhecendo este facto, a Indonésia proibiu a exportação de minério de níquel bruto, desde 2014, de forma a manter esta matéria-prima dentro das suas fronteiras antes de exportar os respectivos subprodutos. Como resposta, a União Europeia recorreu a instrumentos de “liberação comercial” para obrigar a Indonésia a abrir o seu mercado de níquel: em 2021 a UE apresentou uma queixa contra aquele país na Organização Mundial do Comércio, que decidiu desfavoravelmente à Indonésia.
Um dos objectivos mais importantes nas negociações do CEPA é a liberalização do mercado de matérias-primas, com exigências que incluem disposições que proíbem restrições à exportação da Indonésia, nomeadamente a eliminação de todas as taxas de exportação sobre matérias-primas. Objectivo que entra em conflito directo com a política comercial da Indonésia de limitar as exportações de minerais, enfraquecendo e restringindo a soberania do Governo indonésio sobre os seus recursos naturais, e que replica um modelo neocolonial extractivista prejudicial ao desenvolvimento do país. A pressão da UE sobre a Indonésia para eliminar as restrições às exportações de minerais põe em causa o seu compromisso de apoiar a produção interna de valor acrescentado nos países parceiros.
Estima-se que este ano 80% da produção de níquel proveniente da Indonésia será de proprietários chineses. E será que a UE pode competir com a China nas relações comerciais com a Indonésia e tornar-se um parceiro comercial alternativo fiável? Se a UE reconsiderar a sua abordagem dogmática de livre comércio—ou seja, deixar de impor a liberalização comercial e adoptar uma postura mais equitativa, valorizando o desenvolvimento económico sustentável dos países parceiros—passaria a abordar a Indonésia não apenas como fornecedora de matérias-primas, presa a uma produção de baixo valor agregado, mas como uma aliada na transferência de tecnologia essencial. Desta forma, poderia garantir uma parceria justa que promovesse simultaneamente a valorização local nos países anfitriões e a sua transição verde.
No entanto, o CEPA prevê, precisamente, o oposto: impõe vários compromissos que proíbem o desenvolvimento local e a transferência de tecnologia.
A extracção de níquel na Indonésia tem já um enorme impacto sobre o meio ambiente, as comunidades e os seus trabalhadores. A mineração e o processamento de níquel causam a poluição do ar e da água, a emissão de gases de efeito estufa, e são um dos principais motores de desflorestação a nível local. Na realidade, a área florestal à volta das fábricas de processamento de níquel está a desaparecer duas vezes mais rápido, sendo estimado que o níquel ultrapasse o óleo de palma enquanto maior fonte de desflorestação de floresta tropical na Indonésia. Além disso, a exploração deste minério provoca o deslocamento forçado de populações locais. Assim, os direitos das comunidades afectadas pela exploração mineira devem ser tidos em conta no planeamento e implementação de quaisquer projectos, pelo que o consentimento livre, prévio e informado (CLPI) das comunidades indígenas deve ser garantido e as suas decisões respeitadas.
A UE deveria esforçar-se para mitigar o enorme impacto ambiental provocado pela mineração de matérias-primas; manter os mais altos padrões socioambientais na sua cadeia de valor e incluir as matérias-primas no combate à desflorestação, começando por reduzir a sua própria pegada material dentro dos limites planetários, reduzindo a sua dependência de recursos e aliviando a pressão sobre ecossistemas sensíveis.
A expansão da extracção de recursos na UE e a privatização do sector público da energia na Indonésia apenas reforçarão a protecção das empresas multinacionais. Isto é evidenciado pelo Capítulo de Investimento do CEPA Indonésia-UE, que contém o Sistema de Tribunais de Investimento (ICS). A tendência global para garantir o fornecimento de minerais críticos, e a agenda de nacionalização de recursos ao abrigo da lei mineira da Indonésia, abrirá mais potenciais processos judiciais para o país. O sector mineiro é uma das indústrias mais litigiosas quando se trata de ISDS. Assim sendo, verificamos que a incorporação de tais elementos no CEPA UE-Indonésia certamente terá um impacto negativo na protecção dos direitos do povo indonésio. Embora a UE tenha decidido recentemente abandonar o Tratado da Carta da Energia, após vários casos de ISDS, continua a promover disposições sobre ICS (o qual contém escassas melhorias processuais em relação ao ISDS) nas suas negociações comerciais.
Reproduzimos de seguida as exigências da Declaração das OSC:
Declaração conjunta sobre matérias-primas no CEPA UE-Indonésia
As organizações da sociedade civil da Europa e da Indonésia apelam:
- À UE e ao governo indonésio para interromperem as negociações do CEPA entre a UE e a Indonésia, pois o acordo representa uma ameaça para o ambiente e para o clima e para os direitos das mulheres, dos povos indígenas, dos trabalhadores, dos pequenos agricultores e dos pescadores.
- Que a Indonésia mantenha a margem de manobra política para desenvolver a sua própria cadeia de valor de energia e matérias-primas, incluindo capacidades de processamento e refinação. Os capítulos sobre energia e matérias-primas do CEPA limitariam a capacidade da Indonésia de proteger o seu mercado interno através de tarifas e quotas (temporárias) e de desenvolver as suas próprias capacidades de produção.
- Uma transição energética que seja justa, a qual não pode ser alcançada através da privatização dos bens públicos, neste caso da energia. O controlo público através do Estado deve ser reforçado e não enfraquecido pela agenda de liberalização do sector das energias renováveis.
- Que a UE e a Indonésia não acordem qualquer mecanismo de resolução de litígios entre investidores e o Estado (ISDS), como acontece nos acordos da UE com o México e o Chile. A protecção do investimento, incluindo o Sistema de Tribunais de Investimento (ICS), prejudica potencialmente a capacidade do Estado de responder às exigências públicas para a implementação de uma política climática socialmente justa.
- Que o CEPA UE-Indonésia não integre elementos da “Lei Omnibus sobre a Criação de Emprego” da Indonésia, visto esta reduzir os direitos humanos e a protecção laboral na Indonésia. Tanto a UE como a Indonésia devem aderir às normas e convenções da OIT acordadas internacionalmente.
- Uma cooperação comercial que garante que as matérias-primas comercializadas sejam produzidas de acordo com os mais elevados padrões ambientais e de diligência devida. As avaliações de impacto social e ambiental precisam ser obrigatórias para todos os projetos de mineração ou de geração de energia. Os direitos das comunidades afectadas pela exploração mineira de matérias-primas essenciais devem ser reforçados, e estes direitos devem ser tidos em conta desde o início, no planeamento e na implementação de quaisquer projectos. O consentimento livre, prévio e informado (CLPI) das comunidades indígenas deve ser garantido e as suas decisões respeitadas.
- Que a UE reduza o seu consumo de matérias-primas, de forma a manter-se dentro dos limites planetários e a reduzir a sua dependência de recursos provenientes de outros países, como a Indonésia. A UE deve comprometer-se a reduzir o consumo de matérias-primas críticas, estabelecendo metas de redução de consumo através de medidas de suficiência, de eficiência dos materiais, de design responsável e de tecnologias de substituição.
Declaração na íntegra e lista dos signatários, organizações mundiais e regionais aqui.