Um dos argumentos de que se servem os defensores do Tratado da Carta da Energia (TCE) modernizado, é que ele é necessário para promover e proteger os investimentos estrangeiros nas energias renováveis.
Isto é mais uma das alegações sem fundamento tão do agrado dos lobbies das multinacionais e dos governos e partidos que as apoiam. Não só não há evidência de que tratados como o TCE tenham um papel decisivo para o investimento estrangeiro, como até a própria Federação Europeia para as Energias Renováveis (EREF na sigla em inglês) vem expressamente apelar, em comunicado de imprensa, aos Estados-Membros da UE para que iniciem a sua retirada do Tratado da Carta da Energia e rejeitem o chamado acordo de princípio na reunião da Conferência da Carta da Energia marcada para 22 de Novembro, na Mongólia.
A questão é: porque fazem os governos europeus questão de manter um tratado que amordaça a sua acção climática mesmo 20 anos após uma saída do tratado e ameaça de submeter os contribuintes a “indemnizações” multimilionárias?
O governo português recusou inúmeras vezes declarar qual o seu posicionamento na decisão sobre a adopção da versão “modernizada” do TCE. Mas tudo indica que se mantém fiel ao lobby dos combustíveis fósseis e se pronuncia a favor do acordo de princípio sobre a “modernização”.
Publicamos seguidamente a tradução do comunicado de imprensa da EREF:
É tempo de acabar com o Tratado de Carta da Energia (TCE) e de avançar com a Transição energética europeia
Bruxelas, 24 de Outubro de 2022
A EREF apela à UE e aos Estados-Membros para que se juntem à França, Países Baixos, Polónia e Espanha e iniciem a sua retirada do Tratado da Carta da Energia (TCE) porque o chamado acordo de princípio sobre a modernização do TCE mantém a dependência da UE dos combustíveis fósseis e impede a transição para a energia 100% renovável na UE.
A EREF recorda que as conclusões de 15 rondas de negociações, incluídas no chamado acordo de princípio (sobre o qual os governos ainda não chegaram a acordo!) se forem adoptadas a 22 de Novembro, na reunião da Conferência da Carta da Energia que terá lugar na Mongólia irão:
1) alargar a protecção ao abrigo do mecanismo de resolução de litígios investidor-Estado (ISDS) incluído no Tratado da Carta da Energia aos investimentos estrangeiros existentes em combustíveis fósseis, pelo menos até 2033 e no gás até 2043; e
2) introduzir a protecção a investimentos estrangeiros em tecnologias que só são necessárias se a Europa não mudar para 100% de energia renovável.
Ambos os resultados da modernização do TCE não correspondem ao objectivo de neutralidade climática da UE, tal como foi correctamente assinalado pelo Alto Conselho Francês para o Clima no seu parecer sobre o chamado acordo de princípio para a modernização do TCE. Este parecer foi fundamental para a decisão do Presidente Macron de retirar a França do TCE. A UE e outros Estados-Membros não podem ignorar uma recomendação de base científica de um organismo independente de cientistas franceses altamente qualificados em matéria de clima.
A EREF também está céptica quanto à capacidade das novas disposições (ou seja, o direito a regular, a não aplicação do mecanismo ISDS do TCE não reformado para litígios intra-UE) proposto no chamado acordo de princípio para evitar novos processos ISDS contra a UE e os seus Estados-Membros. O acordo inter-se proposto pelo serviço de Comunicação da Comissão Europeia ao Conselho Europeu sobre a interpretação do TCE confirma o nosso receio acerca da insuficiência das alterações propostas no “acordo de princípio” e o risco de novos processos ISDS. Este risco de garantia ao carbono através da utilização do ISDS foi também salientado pelo relatório do IPCC de 2022.
A construção de uma UE alimentada por energia 100% renovável exige o fim imediato da era dos combustíveis fósseis, iniciando a retirada da UE e dos seus Estados-Membros do Tratado da Carta da Energia e rejeitando o chamado acordo de princípio na reunião da Conferência da Carta da Energia prevista para 22 de Novembro na Mongólia.
A actual crise energética revelou que uma transformação rápida para um sistema baseado em energias renováveis, combinada com uma utilização substancialmente mais eficiente da energia, é a única forma verdadeiramente sustentável de recuperar a soberania da Europa sobre as suas políticas energéticas. Um estudo recente sobre metas mais elevadas de energia renovável e eficiência energética 2030 (Resumo Executivo) demonstra a viabilidade e as vantagens financeiras de uma maior utilização das diferentes fontes de energia renovável na Europa que podem fornecer energia descarbonizada em qualquer altura do dia, estação ou ano, e manter os nossos sistemas em equilíbrio.
Director Dörte Fouquet: “A EREF sublinha que, com uma saída coordenada e maciça dos Estados do TCE, a cláusula de caducidade (sunset) sob o art. 47 do TCE ficaria nula ao abrigo das regras da “Clausius rebus sic stantibus clause” estabelecida no direito internacional pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados e o seu artigo. 62. Enfrentamos uma mudança fundamental das circunstâncias em comparação com a época em que o TCE foi desenvolvido”.