O sistema ISDS (e seus semelhantes) ameaça o nosso Planeta, a nossa Democracia, os serviços públicos, os direitos laborais, a coesão social e até os Direitos Humanos (entre outros valores fundamentais) por duas vias diferentes.
Por um lado, ameaça estes valores directamente ao punir (com indemnizações que em média valem cerca de 100 milhões de euros, mas podem atingir valores muitíssimo superiores) governos que procuraram promover estes valores através de políticas públicas que, alegadamente, possam diminuir as perspectivas de lucro de empresas multinacionais ou outros investidores estrangeiros. Nos casos em questão, as políticas em causa são frequentemente descontinuadas ou completamente abandonadas.
Mas este efeito é, na realidade, “a ponta do icebergue”. O impacto directo dos cerca de 1000 casos conhecidos é avassalador, mas quase insignificante em comparação com o impacto que este sistema tem devido ao efeito de “intimidação regulatória”.
O efeito de intimidação regulatória ocorre quando os agentes políticos não aprovam políticas para proteger o Planeta, os serviços públicos, os direitos laborais, a coesão social, os Direitos Humanos, entre outras, por recearem processos que podem ter como consequência o pagamento de indemnizações milionárias, que podem colocar em causa as finanças públicas.
Esta ameaça pode ser “explicada” aos decisores políticos através do recurso a lobistas profissionais. Como admitiu a firma de advogados “Steptoe & Johnson”: «pode perfeitamente ser possível usar as protecções dos tratados de investimento [ISDS, ICS] para auxiliar os esforços dos lobistas com o propósito de evitar o surgimento de alterações regulatórias indesejáveis». O mesmo reconheceu também Peter Kirby, da firma de advogados Fasken Martineau: «é uma ferramenta de “lobying” na medida que tu podes ir lá e dizer “Ok, se fizeres isto, nós iremos processar-vos para nos pagarem uma indemnização”. Isso muda o comportamento, em alguns casos».
Vários decisores políticos também referem esta experiência, como nos relata William Greider: «Vi cartas vindas de firmas de advogados de Nova Iorque e Washington DC dirigidas ao governo canadiano em relação a praticamente toda e qualquer nova regulação ambiental […] praticamente todas as iniciativas eram alvo de missivas e a maior parte delas nunca viu a luz do dia».
Quando escrevemos que os ambientalistas têm no ISDS um “inimigo silencioso”, é a situações como estas que nos referimos.
E, claro está, as empresas multinacionais que mais beneficiam deste sistema também conhecem bem os seus efeitos. A petrolífera Chevron, em 29 de Abril de 2014 declarou, numa reunião com a Comissão Europeia, que «a mera existência do ISDS é importante, já que age como mecanismo dissuasor».
Pela sua própria natureza, não é fácil encontrar exemplos concretos deste mecanismo em acção. Afinal de contas, decisores políticos que receiem o impacto do ISDS têm múltiplas razões para não o assumir publicamente, principalmente se isso coloca a nu o erro em que incorreram ao submeterem-se a este mecanismo de justiça privada. No entanto, apesar deste sistema operar geralmente de forma invisível, existem alguns casos concretos onde podemos identificar com clareza o efeito do mecanismo de intimidação regulatória:
- Em 1998 a ditadura de Suharto caiu e alguns anos depois a Newcrest Mining apresentou um projecto para explorar jazidas de ouro nas florestas protegidas da ilha de Malukus, florestas essas que se caracterizavam por um ecossistema único no mundo. O projecto consistia numa mina a céu aberto que iria arrasar a floresta e destruir os ecossistemas. A população e vários ambientalistas pressionaram o governo no sentido de defender a floresta e o governo considerou acabar com as licenças que vinham do regime ditatorial. Mas a Newcrest Mining ameaçou usar o ISDS contra a Indonésia, referindo um pedido de indemnização de 22 700 milhões de dólares devido à expectativa de lucros que seria gorada pelo fim da licença.
- Também na Indonésia, a empresa Newmont Mining recebeu isenções extraordinárias à legislação nacional (incluindo a legislação associada ao sector extractivo), devido ao receio do governo de ser processado através do ISDS.
- Ficaram célebres os processos da multinacional Philip Morris contra os governos da Austrália e do Uruguai em resposta às leis que impunham regras relativas às embalagens dos maços de cigarros. Aquilo que poucos sabem é que esta circunstância levou o governo neo-zelandês a travar as suas iniciativas relativas a uma legislação semelhante e levou o governo do Uruguai a considerar um afrouxamento dessas leis. Mas o melhor exemplo da tentativa de usar o ISDS para intimidar os legisladores pode encontrar-se na carta que John Oliver revela, na qual a Philip Morris apresenta citações descontextualizadas com o propósito de enganar o governo do Togo a respeito do desfecho da litigação que teve lugar nos tribunais australianos.
- Além destes exemplos, existem uma série de outros casos que já referimos, tais como o caso Novartis vs Colombia (cuja tradução se encontra aqui), o desfecho do caso Vattenfall contra Alemanha I, Ethyl vs Canadá, entre outros.
Qualquer sistema de justiça terá sempre um impacto que em muito ultrapassa o impacto directo associado aos casos que são litigados, já que o efeito dissuasor é sempre de enorme relevância. Mas num mecanismo de justiça privada, que ameaça o Estado de Direito e que é distorcido em favor dos interesses das grandes multinacionais, as consequências deste tipo de intimidação são absolutamente devastadoras. Urge pôr fim imediato a este sistema.