A cobrança eficaz e justa de impostos é essencial para todos os estados, e, sobretudo, para os países em desenvolvimento que desejam desenvolver-se de forma sustentável. A cobrança de impostos é um meio para garantir serviços públicos de qualidade para todos e para enfrentar coletivamente os desafios das mudanças climáticas. No entanto, no Vietname e noutros países, as grandes multinacionais contestam os governos que tentam cobrar impostos sobre os seus enormes lucros. A resolução de litígios entre investidores e estados (ISDS) é uma das suas principais vias para tentar evitar o pagamento de impostos e de, em vez disso, receber indemnizações milionárias.
No Vietname, as empresas multinacionais operam no sector petrolífero desde a década de 80. Em 2012, dois campos petrolíferos vietnamitas foram vendidos por duas filiais britânicas da gigante energética americana ConocoPhillips1 a uma empresa britânica pertencente à empresa petrolífera anglo-francesa Perenco. A ConocoPhillips vendeu as empresas por 1.290 milhões de USD, tendo obtido um lucro de 896 milhões de USD. Mas a mais-valia de 896 milhões de USD nunca foi tributada.2
“Importantes organizações internacionais – incluindo o FMI, OCDE, ONU e o Grupo do Banco Mundial – fizeram hoje um apelo aos governos do mundo inteiro para que reforcem e aumentem a eficácia dos seus sistemas fiscais, a fim de gerar os recursos nacionais necessários para alcançar os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).” – Organização para a cooperação e o desenvolvimento económico (OCDE)3
O Governo do Vietname considera que tem o direito de tributar esse ganho que nunca tributou, já que ele foi gerado pela exploração dos recursos petrolíferos do país. O tratado fiscal entre o Reino Unido e o Vietname também concede esse direito ao Vietname.4 De acordo com a taxa fiscal em vigor no Vietname, a ConocoPhillips deveria pagar ao Governo vietnamita cerca de 179 milhões de USD pelo seu ganho de capital, um montante com o qual o Governo poderia financiar a construção de 9 hospitais.5 O Vietname sinalizou sua intenção de tributar a transação em 2015, através de uma carta única dirigida ao comprador e ao vendedor.
“Uma tributação justa ajudará o Governo vietnamita a cobrir o orçamento dos serviços públicos, incluindo serviços que têm em conta as questões de género, como o acolhimento das crianças, criando assim mais oportunidades para que as mulheres realizem um trabalho remunerado, contribuindo assim para reduzir a desigualdade de género.” – Hoang Phuong Thao, Director de país da ACTIONAID no Vietname6
Grandes empresas petrolíferas recusam-se a pagar impostos e, além disso, exigem milhões de dólares.
Ambas as empresas se recusam a pagar este imposto. A ConocoPhilips, por exemplo, argumenta que a venda se realizou entre duas entidades britânicas sem presença tributável no Vietname, pelo que não deveriam ao país nenhum imposto sobre a venda.7 No entanto, surpreendentemente, a ConocoPhilips também não pagou nenhum imposto sobre a venda no Reino Unido, graças a uma lacuna na lei fiscal britânica.8
Para evitar que o Vietname cobrasse o imposto sobre ganhos de capital e, pelo contrário, embolsasse algum dinheiro extra, a ConocoPhilips e a Perenco estão em conjunto a processar o Governo vietnamita através do ISDS. O caso foi apresentado em 2017 e baseia-se no tratado de investimento bilateral entre o Reino Unido e o Vietname.
Resultado do caso
Pendente
Em aberto, ConocoPhillips pretende esquivar-se de pagar ao Governo vietnamita cerca de 179 milhões de dólares.
Não há mais informação publicamente disponível sobre o seu caso contra o Vietname, devido ao sigilo que frequentemente envolve os casos de ISDS e às escassas informações disponibilizadas por ambas as partes sobre este caso. Entretanto, a Perenco continua a explorar os campos de petróleo em todo o país, tendo, em 2017, gerado lucros de mais de 32 milhões de USD.13
“O direito do Estado de tributar os investidores estrangeiros (…) enfrenta muitas vezes limitações resultantes das interpretações amplas e um tanto exageradas das disposições contidas nos acordos internacionais de investimento.” – Daniel Uribe e professor Manuel F Montes, investigadores no Centro SUL9.
O ISDS poderá impedir os países em desenvolvimento de cobrar impostos sobre ganhos de capital.
Este caso, assim como dois outros contra a Índia, poderia funcionar como um precedente negativo no Vietname e em outros países em desenvolvimento que estão a tentar cobrar impostos para financiar a redução da pobreza, a saúde, a educação, etc. Conforme declarou o jornalista George Turner à organização Finance Uncovered quando revelou o “ataque legal preventivo” da indústria petrolífera contra o Vietname, em 2018: “como cada vez mais países denunciam que os seus recursos foram comprados e vendidos por estrangeiros livres de impostos, é provável que esta questão se torne uma nova etapa na campanha contra a evasão fiscal. No caso de o Vietname ser bem-sucedido, isso poderá ter implicações profundas para outros países em desenvolvimento, que muitas vezes viram empresas ocidentais obterem enormes lucros por meio dos seus investimentos, para depois se irem embora com eles livres de impostos”. Não admira, acrescentou Turner, que as grandes empresas petrolíferas queiram travar uma tal ameaça “à sua trajectória”.10
Tanto a ConocoPhillips como a Perenco são utilizadores frequentes do ISDS: A ConocoPhillips obteve em 2019 mais de 8,3 mil milhões de USD de indemnização por danos, contra o Governo da Venezuela.12 A Perenco, por sua vez, está a processar o Governo equatoriano num tribunal ISDS: a empresa recusa-se a pagar um imposto sobre os lucros excedentes resultantes da exploração de petróleo.
“A experiência dos países em desenvolvimento em relação aos resultados de tais casos não inspira optimismo, pois é bem sabido que os tribunais tendem a ser mais favoráveis aos investidores e geralmente sobrepõem as reivindicações das empresas aos direitos dos governos ou mesmo aos direitos humanos dos cidadãos.” – Jayati Ghosh, Professor de economia, Jawaharlal Nehru university, Índia11
O ISDS como ameaça à justiça fiscal
Pelo menos 24 países enfrentaram casos de ISDS relacionados com a tributação, incluindo o Uganda, a Índia, Laos, a Argélia, o Iêmen, o Equador, a Venezuela, o Peru, a Bolívia, o México e a Argentina.14
A Índia, por exemplo, já foi processada duas vezes por pretender que as empresas pagassem o imposto sobre ganhos de capital:
Em 2015, quando a Índia tentou impor um imposto de 1,6 mil milhões de USD sobre os ganhos de capital de uma filial britânica da Cairn India, uma das maiores empresas de petróleo e gás do país, a Cairn processou o país através do ISDS, exigindo ao Governo indiano que, em vez disso, lhe pagasse 1,3 mil milhões de USD de indemnização. O caso foi apresentado com base no tratado de investimento bilateral entre a Índia e o Reino Unido em 2015 e está ainda em curso.15
Quando o país tentou impor o mesmo imposto à Vodafone, depois de a gigante britânica das telecomunicações ter comprado uma das maiores operadoras de redes móveis da Índia por 11 mil milhões de USD sem pagar quaisquer impostos, a Vodafone processou a Índia através do seu acordo de investimento com a Holanda e, mais tarde, com o Reino Unido. A questão passou por várias fases, tanto nos tribunais indianos como no sistema ISDS, tendo a Índia resistido de forma proactiva à tentativa da empresa de evitar o pagamento do imposto, e até agora ainda não houve um julgamento ou a resolução definitiva do assunto.16
“Uma vasta gama de medidas fiscais dos estados foi contestada por empresas gigantes, através do sistema ISDS. O poder que esse sistema confere às multinacionais para contestar políticas fiscais progressivas deveria preocupar os cidadãos de todos os países que assinaram tratados de comércio e investimento.” – Claire Provost, Jornalista17